sol.sapo.ptMário Ramires - 17 mar. 09:17

O inferno e as boas intenções de Marcelo

O inferno e as boas intenções de Marcelo

Quem viajar pelas estradas do norte de Portugal, sobretudo de Santarém para cima, pode constatar que nunca como agora se limpou tanto ou houve tanta preocupação com a limpeza da área florestal e não florestal. É visível.

Porque há gente um pouco por todo o lado empenhada em limpar as suas propriedades e as matas, porque há queimadas em série como nunca se viu, porque mesmo em áreas ardidas há um trabalho já notável e há árvores cortadas e em remoção e aceiros recuperados e casos evidentes de distâncias às estradas e edificados finalmente respeitadas.
Muitas Câmaras promoveram ações de informação e esclarecimento junto de proprietários, arrendatários e munícipes.

A GNR tem mais meios e está mobilizada para o levantamento de todas as áreas de risco e, em particular, das zonas definidas como prioritárias.

Os bombeiros estão a ser sensibilizados pela Autoridade Nacional de Proteção Civil para os perigos da obesidade e pré-obesidade em que se encontra uma percentagem demasiado alta de profissionais e voluntários - diminuindo a capacidade de resistência e aumentando os riscos para a saúde e integridade física dos próprios em situações de emergência.
Os autarcas estão conscientes das sanções - civis e criminais - e das consequências para os orçamentos das respetivas autarquias em caso de incumprimento das determinações legais, conforme a lei vigente mas até aqui em desuso e a lei do Orçamento do Estado para o ano corrente.

Mas há também, e são igualmente visíveis - para entendidos e não entendidos -, inúmeros casos de perigo evidente.
Não houve, nem há, tempo para reflorestar o país de lés a lés ou planear e ordenar a floresta nacional como se fosse possível fazê-lo num golpe de asa ou num passo de magia. É óbvio que essa gigantesca tarefa ainda levará décadas a concretizar, mesmo que já tenha começado. Porque é inadiável.

Como inadiável é a eliminação, o mais possível, de todos os riscos prementes.
Depois do que se passou em 2017, não há elasticidade possível.

Em matéria de prevenção, faça-se tudo o que pode e deve ser feito. Aqui e agora, sim, sem afetos.
O Presidente da República esteve extraordinariamente bem no apoio às populações, na exigência de apuramento de responsabilidades, no ultimato ao Governo para que nada fique como dantes na prevenção e no combate a um verdadeiro flagelo nacional.

Não pode, agora, estragar tudo. Ainda que esteja bem intencionado. Porque, como diz o povo, de boas intenções está o inferno cheio. 

E os incêndios de 2017 foram um inferno.

Ora, neste clima, Marcelo Rebelo de Sousa pode involuntariamente ter prestado um mau serviço à sua causa de tudo fazer - doa a quem doer - para evitar que se repitam tragédias como as de 2017.
Marcelo comprometeu-se, e bem, a fazer da prevenção e combate aos incêndios uma causa nacional, ‘o’ desígnio nacional e a primeira das prioridades do seu mandato presidencial.

Na passagem do segundo aniversário da sua posse como Presidente da República não se esqueceu do tema.
Mas foi infeliz.

Apelando à ‘elasticidade’ das autoridades no que respeita aos prazos para a limpeza das propriedades, e justificando-a com o mau tempo dos últimos dias, Marcelo comete um erro de palmatória.

Haja o que houver, se a lei não é para cumprir e fazer cumprir, o Presidente da República deve ser o primeiro a intervir em sua defesa, porquanto foi investido nas suas funções sob juramento de cumprir e fazer cumprir a Constituição - logo, a Lei.

Marcelo pode enviar mensagem ao Governo ou à Assembleia para que mude a lei ou altere os prazos e cominações do seu incumprimento.

Mas não pode, não deve, apelar à ‘elasticidade’.

Se o Governo mostrar flexibilidade, voltamos ao mesmo. O alargamento do prazo entretanto anunciado por António Costa - até junho - foi a melhor resposta do Governo. E mesmo assim, quem sabe não será excessiva.

Se não é possível fazer num ano o que não se fez em décadas, é possível fazer num ano o que nunca foi feito e o mais possível.

E isso não se compadece com desculpas do mau tempo, da chuva, de tempestades ou do que quer que seja. Ou com mais ‘elasticidades’.

Porque a verdade é que, passados mais uns largos meses desde Pedrógão e do 15 de outubro, as responsabilidades continuam por apurar e as consequências ficaram-se pela demissão de uma ministra e de um secretário de Estado, mais um outro comandante operacional, que manifestamente estavam nos lugares errados no tempo errado.
Chorar não adianta. E os afetos devem guardar-se para os momentos em que eles são verdadeiramente precisos.
Em tempo de agir, os afetos não passam de populismo.

PS: António Costa não deve comprar o SOL nem o i. Ou, se compra, não lê. Nos últimos meses, o desígnio nacional da prevenção e combate aos incêndios é o tema mais recorrente nas capas do SOL e do i. Como, aliás, nesta página (só nas últimas semanas, esta é a terceira crónica dedicada à reforma em curso - quer nas estruturas e meios de combate quer na prevenção - desde que o SOL, há cinco edições, fez a manchete «Incêndios: Costa implacável com as Câmaras», que antecipou o debate agora generalizado sobre a limpeza de terrenos).

NewsItem [
pubDate=2018-03-17 10:17:00.0
, url=https://sol.sapo.pt/artigo/604622/o-inferno-e-as-boas-intencoes-de-marcelo
, host=sol.sapo.pt
, wordCount=804
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2018_03_17_121982674_o-inferno-e-as-boas-intencoes-de-marcelo
, topics=[opiniao]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]