www.dn.ptJoão Gobern - 18 dez. 00:01

Bolso De Valores - Suspense familiar

Bolso De Valores - Suspense familiar

Quando descobri Samanta Schweblin, posta em destaque numa livraria da Corunha com o seu segundo livro (e segundo de contos), Pájaros en la Boca, devo confessar que a primeira atração nasceu de uma cinta que estrategicamente envolvia o pequeno volume. Dizia só isto: "Como numa película de David Lynch ou num pesadelo de Kafka." Para quem goste de desafiar os clássicos e se sinta confortável na aventura de cruzar as artes, o chamariz tornava-se irresistível; e, ao contrário do que infelizmente acontece tantas vezes, o desfecho revelou-se à altura dessa provocadora síntese. À época, Schweblin surgia como uma das mais sonoras vozes da literatura argentina, sempre capaz de nos agitar e seduzir, quase na mesma medida. Cada um dos seus contos sugeria ou, mais do que isso, desenhava uma curta-metragem capaz de conciliar uma sensação amarga de aflição e uma atração magnética impossível de combater. Cada uma das suas histórias envolvia uma dupla dimensão - entre o banal e o transcendente, entre o quotidiano e o inexplicável.

Distância de Segurança - uma expressão em que pouco tinha reparado mas que, agora, me faz tropeçar, aparecendo em repetidas ocasiões, em escritos ou na TV - deve ser lido com uma banda sonora entregue a Angelo Badalamenti (o parceiro sonoro de Lynch) ou a Bernard Herrmann (que tantas obras-primas fez diluir nos filmes de Hitchcock). A cada página, a cada parágrafo, quase a cada frase, a autora estende-nos uma passadeira cheia de armadilhas, de sobressaltos, daquelas que nos transmitem, por mais que delas fujamos, aquelas sensações de frio no estômago que associamos ao medo. O notável é que nada disto parte de monstros ou demónios, de vilões ou assassinos, de algo que escape verdadeiramente à nossa vida de todos os dias e, pior do que isso, à dimensão familiar. Bastará dizer que todo este livro - o segundo de Schweblin a chegar às edições locais, meia dúzia de anos depois de a Cavalo de Ferro ter publicado o citado Pássaros na Boca - se constrói num diálogo entre uma mulher moribunda, Amanda, e uma criança especial, David. A primeira está às portas da morte, numa cama de hospital. Mas, para poder partir em paz, precisa de ajuda para esclarecer o que lhe aconteceu, a ela e à filha, Nina. Algo que se entrelaça com os acontecimentos que envolveram David e a mãe deste, Carla.

Tudo passa por uma intoxicação fulminante, de que David se salva - mas não terá seguido direto para outro género de condenação? - quando a mãe o entrega aos cuidados de uma curandeira (a mulher "da casa verde", vizinha de Carla e do miúdo), que o submete a uma "transmigração", que se traduz, simplificando, na passagem do espírito de David para outro corpo, porque só dois corpos conseguirão combater a doença, o mal. Em desespero, Carla aceita para depois se arrepender que o David sobrevivente já não é exatamente o seu filho tão amado...

Esta história extrema, quase sempre angustiante, sempre suscetível de provocar arrepios a quem lê, ganha densidade pelo contraste: tudo o que Amanda e David nos vão contando decorre em ambiente familiar, simpático e aparentemente harmónico. Há uma casa com piscina, um ribeiro vizinho, uma criação de cavalos, cães e patos, campos por onde passear, limonadas e bolachas de manteiga - nada que permita pressagiar o drama que vai tomando conta das vidas como uma onda de humidade numa parede recetiva. Quando uma lata de ervilhas pode transformar-se num elemento de terror, podemos esperar o pior. Mesmo que ele nasça do sentimento mais puro, que é o incondicional amor de mãe. Numa palavra: medo. E muito.

Distância de Segurança
Samanta Schweblin
Trad.: Miguel Filipe Mochila
Ed. Elsinore
128 páginas
PVP: 13,49 euros

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