www.publico.ptopiniao@publico.pt - 18 dez. 06:45

Opinião. Glorificação e sequestro da vontade popular

Opinião. Glorificação e sequestro da vontade popular

Há uns dias uma deputada do Partido Conservador britânico, Anna Soubry, foi ameaçada de morte por ter votado a favor de uma emenda que dará ao Parlamento do Reino Unido a última palavra no acordo do Brexit entre o seu país e a União Europeia. Entre os insultos que lhe foram lançados houve um particular que deve merecer a nossa atenção: o de que Anna Soubry deveria ser enforcada por ser traidora. Isto passa-se no país em que a deputada trabalhista Jo Cox foi assassinada nas vésperas do referendo de saída da UE por um homem que a chamava de traidora enquanto a esfaqueava.

Há uns dias uma deputada do Partido Conservador britânico, Anna Soubry, foi ameaçada de morte por ter votado a favor de uma emenda que dará ao Parlamento do Reino Unido a última palavra no acordo do Brexit entre o seu país e a União Europeia. Entre os insultos que lhe foram lançados houve um particular que deve merecer a nossa atenção: o de que Anna Soubry deveria ser enforcada por ser traidora. Isto passa-se no país em que a deputada trabalhista Jo Cox foi assassinada nas vésperas do referendo de saída da UE por um homem que a chamava de traidora enquanto a esfaqueava.

As acusações de traição não se limitam a políticos e deputados. Há uns meses, também no Reino Unido, um coletivo de juízes do Supremo Tribunal decidiu a favor do parlamento num caso sobre a notificação do Brexit. Na capa do segundo maior jornal diário foram publicadas as fotos dos juízes sob a legenda em letras garrafais: “INIMIGOS DO POVO”.

De cada vez que uma destas coisas acontece no Reino Unido eu penso sempre numa das minhas professoras, anglófila assumida, que nos explicava que os países anglo-saxónicas jamais poderiam ser atingidos pelo vírus do populismo porque na sua cultura política não constava a categoria de um coletivo homogéneo abstrato que se definisse através de uma pretensa “vontade popular”. Essa noção, explicava ela, era exclusiva da cultura política francesa. “Vontade popular” era Rousseau, e “Inimigos do povo” era Robespierre. Nunca um pensador ou político britânico se poderia exprimir de tal forma. Espero que a minha professora não leia hoje muitos jornais britânicos, porque essa linguagem jacobina é agora absolutamente central à cultura política britânica.

Seria disparatado, porém, enveredar pelo erro inverso. Esta linguagem não é exclusiva do populismo britânico. Ela está um pouco por todo o lado, em todo o tipo de países e de culturas políticas. Não porque os seus perpetradores tenham lido Rousseau ou conheçam a história de Robespierre, mas por puro interesse próprio. Ou seja: porque dessa linguagem tiram poder, dinheiro e vantagens políticas.

Curiosamente, aqueles que chamam traidores aos juízes ou aos deputados britânicos fazem-no atacando algo que diziam defender antes do referendo do Brexit. Um dos argumentos mais poderosos de quem queria a saída da UE era o de que o poder supremo no Reino Unido teria de ser o do Parlamento de Westminster. Agora os juizes e deputados são expostos como traidores à vontade popular por decidirem de acordo com aquilo que os vencedores do referendo ainda há uns meses consideravam ser a vontade popular.

Não é preciso esgravatar muito para perceber que há algo de muito esquisito com esta interesseira noção de vontade popular. E não é só o facto de um referendo em que ambas as opções têm um resultado próximo de 50% ser menos uma materialização da vontade popular do que a mais cabal descrição de uma sociedade dividida sobre o que é a sua vontade. Nem tampouco o facto de as mais recentes sondagens darem uma maioria de dez pontos aos britânicos que querem ficar na UE — essa “vontade popular”, é claro, não vale. O populista só gosta da vontade popular que concorda com ele.

O problema está mesmo em querer atribuir à vontade popular uma responsabilidade que não conseguiríamos assumir para cada um de nós: a capacidade de saber sobre todos os assuntos a todo o momento e de sobre esses assuntos emitir opiniões definitivas e certas sem depois precisar de mudar de ideias. Essa vontade popular não existe assim, como não existe assim qualquer vontade individual ou coletiva. Decidir sair da UE é legítimo. Opôr-se a essa saída não faz de ninguém menos povo, e muito menos inimigo do povo.

Enquanto não virmos a democracia como aquilo que ela é — um conjunto de processos através dos quais se legitimam decisões e não a materialização de uma vontade infalível — deixaremos que a nossa política seja tomada por estes aprendizes de feiticeiros que alegam que só eles sabem qual é a vontade popular. E quando o povo não concordar com eles? É simples. Dirão, é claro, que esse não é o “verdadeiro” povo.

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