www.dn.ptAnselmo Crespo - 18 dez. 00:04

O meu primo

O meu primo

O meu primo tem uma doença rara. Roubou-lhe grande parte da infância, privou-o de muita coisa na adolescência e limita-lhe quase toda a vida adulta. Ser pai ou mãe de uma criança com uma doença rara é estar condenado a sofrer até ao fim da vida. É ter apenas a genética a que atribuir as culpas e querer encontrar outros culpados, mais palpáveis. É apagar um futuro sonhado e começar a construir, do zero, um amanhã de cada vez. É o pânico do vazio, do desconhecido, da ausência de respostas. Pensar que podemos compreender este sofrimento é enganarmo-nos a nós próprios.

Quando, há 20 anos, a doença do meu primo foi descoberta, o país era muito diferente daquilo que é hoje. Não existia a Casa dos Marcos, nem nada parecido que pudesse apoiar famílias e doentes com doenças raras. A comunidade médica era extremamente cética sobre os tratamentos experimentais e alternativos, que só se realizavam no estrangeiro. E o Estado pouco sensível a este tipo de doenças, quer no apoio que prestava às famílias quer na criação de condições para que as IPSS pudessem colmatar as falhas do próprio Estado. Ao meu primo e aos pais não restava outra alternativa que não fosse desbravar caminho. Desistir estava fora de hipótese.

Se é verdade que a comunidade médica e científica precisava de tempo para fazer o seu trabalho de investigação, não é menos verdade que a vida não para e a doença também não. Pelo contrário, a cada dia ela corrói mais um bocadinho, paralisa mais um membro do nosso corpo, rouba-nos mais um pedaço de vida. Nesse caminho de pedras, que foi sendo percorrido, o meu primo descobriu que não estava sozinho. Que havia outros meninos, outros jovens, outros adultos, que andavam há mais anos que ele a enfrentar a escuridão de uma doença incurável e que os podia matar.

O meu primo não pertence à Raríssimas, mas a uma outra associação de doenças raras que tem a mesma missão: apoiar doentes e familiares nesta luta que parece inglória, mas que é a mais gloriosa de todas. Fazer de cada dia uma vitória não é pouca coisa. Como ele, há cerca de 600 mil pessoas, só em Portugal, portadoras de uma doença rara, cerca de 6% da população. 80% tem origem genética e cerca de 50% é diagnosticada em crianças. Talvez este seja um bom ponto de partida para a discussão que realmente importa.

Há dois erros que estamos proibidos de cometer: tomar a árvore pela floresta e abandonar estes 600 mil portadores de doenças raras à sua sorte. Não desvalorizo, nem por um segundo, as suspeitas que recaem sobre Paula Brito e Costa. Nem sequer simpatizo com esta figura de lobista que sabe "mexer os cordelinhos" para conseguir o que quer. Mas parece-me indiscutível que o trabalho realizado pela Casa dos Marcos é absolutamente fundamental para centenas de doentes e famílias que enfrentam todos os dias o desconhecido. Que a desconfiança em relação a uma pessoa não pode - e não deve - alastrar-se às associações que cumprem um papel imprescindível na sociedade.

Não sei se Paula Brito e Costa fez ou não uma gestão danosa da Raríssimas. Isso caberá aos órgãos competentes julgar. Se se favoreceu a si própria e aos que lhe são próximos, com dinheiro do Estado e dos mecenas que devia ser canalizado para apoiar os doentes. Sei que o Estado falhou e continua a falhar. Nas respostas sociais que não dá e que, por isso, tem de entregar às IPSS. E, sobretudo, na fiscalização que não faz ao dinheiro que entrega a essas IPSS. E na reação que teve perante uma notícia de tamanha gravidade como a que a TVI divulgou.

Vieira da Silva, um dos mais competentes ministros deste governo, ainda não acertou uma neste processo. Começou por um comunicado ridículo em que dizia que talvez apenas talvez valesse a pena investigar. Depois deu uma conferência de imprensa, que devia constar de todos os manuais de gestão de crise como "algo que nunca se deve fazer." E nunca fez a única coisa que devia ter feito: intervir de imediato, nomeando uma comissão de gestão para a instituição que desse confiança a utentes, familiares, trabalhadores e a quem subsidia a Raríssimas.

O meu primo tem 26 anos. Está numa cadeira de rodas há anos. Mal mexe as mãos. Precisa de ajuda para fazer quase tudo o que eu consigo fazer sozinho. O meu primo é das pessoas mais inteligentes que conheço. Completou o ensino superior e está a trabalhar. A qualidade de vida que tem deve-a aos pais, mas também ao apoio que o Estado e os mecenas dão às IPSS como aquela a que ele pertence. O meu primo tem uma doença rara. E é o meu herói.

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