sol.sapo.ptJosé António Saraiva - 17 dez. 09:00

O poder do povo

O poder do povo

Quando os republicanos derrubaram a Monarquia e instituíram o novo regime, a figura do Presidente da República substituiu a do Rei.

Mas a diferença entre ambas não era grande: os poderes eram basicamente os mesmos.

Tal como o Rei, o Presidente era o ‘chefe do Estado’, sem poderes executivos.

A grande diferença residia na origem simbólica do poder: no caso dos reis, o poder vinha de cima, de Deus - pelo que eram inamovíveis e a sucessão fazia-se por via dinástica; no caso dos Presidentes, o poder vinha de baixo, do povo, e por isso eram eleitos.

Mas se, desde 1910, os chefes do Estado são esolhidos (direta ou indiretamente) pelo povo, a verdade é que o seu poder não assenta no povo.

O poder dos Presidentes decorre das prerrogativas do cargo.

O Presidente não se estriba no povo para decidir - estriba-se nos seus poderes constitucionais.

Poderes esses que, por vezes, funcionam como um colete de forças.

Sabemos como Ramalho Eanes, Jorge Sampaio e Cavaco Silva (Mário Soares é outro caso) se sentiram em vários momentos tolhidos pelos limites constitucionais do cargo, tendo de fazer contorcionismo para os respeitar.

Mário Soares foi o mais diferente de todos nesse aspeto, mas mesmo assim nunca conseguiu ir tão longe quanto provavelmente quereria.

Até que chegou Marcelo Rebelo de Sousa. Que, para espanto geral, inaugurou uma forma totalmente nova de exercer a função.

O Presidente fechado no Palácio, que preside a atos oficiais e só se mostra em público quando o rei faz anos, deu lugar a um Presidente vagabundo, quase vivendo na rua e falando às televisões de manhã, à tarde e à noite.

Os leitores sabem as reservas que coloquei a este modelo.

Achei que o cargo ia ser vulgarizado e a palavra do Presidente da República banalizar-se-ia, perdendo valor.

Mas confesso que hoje tenho dúvidas.

O que vejo é Marcelo Rebelo de Sousa ter a última palavra em tudo.

O que Marcelo diz faz lei.

Quando Marcelo abre a boca, o Governo vai atrás dizer ámen.

Quando Marcelo põe em causa uma ministra, António Costa demite a ministra; quando levanta dúvidas à alínea de um diploma, o Conselho de Ministros retira a alínea; quando faz uma observação sobre declarações de um ministro, o ministro vem no dia seguinte retificar o que disse.

Parece que Marcelo supervisiona politicamente o Governo e o corrige.

Mas por que se submete o Governo a essa tutela?

Por medo.

Recorde-se o que aconteceu após o célebre discurso do Presidente sobre os incêndios, em que puxou as orelhas ao Governo:  António Costa mandou calar os socialistas que lhe queriam responder.

E fê-lo, porque percebeu que o poder de Marcelo, ao contrário do que acontecia com os outros Presidentes, vem diretamente do povo.

Por isso, afrontar o Presidente significa afrontar o povo.

É a primeira vez que isto acontece.

Marcelo deitou fora a pompa e o formalismo do lugar, mas ganhou um poder mais importante: a legitimação popular sem intermediários.

Como aqueles reis que se misturavam com o povo e dançavam com ele - e que eram endeusados pelos súbditos.

De início, a direita começou por olhar para Marcelo Rebelo de Sousa de soslaio, por ele andar com o Governo ao colo; e depois dos incêndios foi a esquerda que passou a torcer o nariz a Marcelo, pelas críticas feitas ao Governo.

Ora, este percurso contribuiu para instalar entre os portugueses a ideia de que o Presidente age mais em nome das pessoas do que em nome dos partidos ou dos políticos.

E isso foi decisivo.

Simultaneamente, Marcelo começou a falar com mais cuidado e a preparar melhor as intervenções, pondo de lado os improvisos.

Deixou-se de tantas selfies e de aparecer quase diariamente ao lado de António Costa, trocando piropos e abrigando-se debaixo do seu chapéu de chuva.

E a presença repetida junto das vítimas das incêndios, em contraste com a atitude displicente do primeiro-ministro, calou fundo junto dos portugueses.

Ninguém tem coragem para atacar um homem que incansavelmente passou dias a fio em contacto com populações traumatizadas, consolou famílias, insuflou ânimo, distribuiu calor humano, suavizou a dor dos que perderam tudo.

Fazer mais era impossível.

Marcelo Rebelo de Sousa tem um poder que nenhum Presidente da República teve antes dele e poucos reis conseguiram: o poder que vem mesmo da base, que se funda no povo, que não decorre de eleições, de sucessões ou de revoluções.

Marcelo inventou um novo Presidente - que, retirando diretamente do povo o seu poder, tem uma ‘legitimidade’ muito superior à de qualquer outro órgão, permitindo-lhe impor ao Governo os seus pontos de vista e condicionar a oposição.

Curiosamente, na função de Presidente da República, os defeitos de Marcelo (que são vários, não nos esqueçamos) ficaram na sombra e a maioria dos portugueses só vê as suas virtudes.

Que também são muitas: predisposição para o contacto direto, grande empatia com as pessoas, resistência física inesgotável, raciocínio rápido, verbo ágil.

É óbvio, entretanto, que a original presidência de Marcelo criou um problema ao regime: é irrepetível.

O novo modo de exercer o cargo de Presidente da República que Marcelo inventou não pode fazer escola nem ser replicado - porque supõe uma personalidade sui generis, que é impossível imitar.

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