www.publico.ptteresa.de.sousa@publico.pt - 17 dez. 07:35

Opinião. Uma “grande coligação” europeia ainda é possível?

Opinião. Uma “grande coligação” europeia ainda é possível?

É o sentimento de destino comum europeu que falta reconstruir. Ainda estamos longe de saber se vai ser possível, mas há alguns sinais positivos.

1. Por uma vez, o último Conselho Europeu de 2017 não confirmou a maldição que tem perseguido a União Europeia, segundo a qual tudo o que pode correr mal, corre mesmo mal. Podia ter corrido pior. Há a sensação de que, passado o auge da crise, existe uma genuína vontade em muitas capitais europeias (incluindo Berlim) de começar a fazer o que é preciso para que a Europa se volte a pôr de pé, refaça a sua unidade e olhe de frente para os desafios que enfrenta. É este sentimento de destino comum que falta reconstruir. Ainda estamos longe de saber se vai ser possível, mas há alguns sinais positivos.

Theresa May recebeu a sua prenda de Natal: um kit de sobrevivência politica. Depois de mais uma derrota em casa, ganhou em Bruxelas a passagem para a segunda fase das negociações do “Brexit” e elogios dos seus pares europeus. A União Europeia tem de manter a sua estratégia negocial, mas sabe que não pode esticar a corda ao ponto de parti-la. O resultado final tem de ser “win-win”, de forma a não causar demasiados estragos na Europa, incluindo o Reino Unido. May pode agora anunciar uma versão mais “soft”, mesmo que ainda não se saiba exactamente que contornos terá. O Labour tem de abandonar a sua estratégia de indefinição e dizer exactamente o que quer. Os rebeldes conservadores têm de fazer melhor as contas. Um dia destes, vão ter de apresentá-las aos britânicos.

2. Angela Merkel, ainda em gestão, cumpriu o que prometera a Emmanuel Macron e a outros governos europeus, incluindo o português. A reforma da zona euro não vai ser retirada da agenda ou relegada para um lugar secundário, como se temia. O grande debate sobre o futuro do euro tem data prevista: a cimeira de Março. A chanceler foi insistindo em que não são assim tão grandes as diferenças entre ela, Macron e Juncker. “Eu quero [a reforma da zona euro] e onde há uma vontade, há um caminho”. Merkel sabe que a sua próxima tarefa é negociar uma nova “grande coligação” com o SPD e não lhe convém criar mais divisões em torno da política europeia. O Presidente francês deu também alguns sinais de que não vai carregar demasiado no acelerador, no que toca às suas propostas sobre a conclusão da reforma do euro, ainda muito distantes das de Merkel. António Costa ajudou a conseguir este compromisso (acreditem, não é uma mentira do dia 1 de Abril), ganhando apoios para Centeno em Paris e em Berlim. A Bloomberg dizia, sobre a escolha do ministro português das Finanças para presidir ao Eurogrupo, que significava um entendimento entre Merkel e Macron sobre os próximos passos da reforma da união monetária. Nada será fácil, mas Merkel parece ter aceitado que o status quo não serve a zona euro, quando tiver de enfrentar a próxima crise, e haverá uma próxima crise. O mais importante foi o ambiente bastante mais respirável em que decorreu esta cimeira europeia, apenas perturbado pela guerra em torno dos refugiados. Já lá voltamos.

3. A Pesco também mereceu consenso. O trabalho já estava feito pelos chefes da diplomacia europeia e por Federica Mogherini. Não é a que Paris desejava, mas espera-se que seja diferente das anteriores tentativas falhadas para garantir à Europa alguma autonomia estratégica com a indispensável capacidade militar. Há um factor novo. A Europa está a aprender a grande velocidade o que é viver sem os Estados Unidos, um “vício” que adquiriu durante décadas, justamente porque a “droga” era barata e sem quebras de abastecimento. Enquanto Donald Trump estiver na Casa Branca não podem contar com ele. O que virá depois desta fase em que a América se retira do mundo já não será o que havia antes. Outros grandes actores internacionais, que não fazem parte do clube das democracias ocidentais, estão a preencher o vazio. A Rússia não vai mudar o seu nacionalismo agressivo. Será um permanente factor de instabilidade na fronteira leste da União Europeia. Já tem, entretanto, os dois pés na Síria. O Médio Oriente entrou em roda livre, desde que Trump resolveu deitar gasolina na fogueira, alinhando com os sauditas e acelerando a guerra por entrepostos actores entre Riade e Teerão. Os europeus têm de olhar para a região do Sahel e ter um plano de estabilização urgente. A prova dos nove sobre a nova “cooperação estruturada permanente” (uma designação tipicamente europeia), como escreveu Judy Dempsy do Carnegie Europe, será saber “se mundo vai dar por ela”. A Alemanha forçou um modelo o mais alargado possível (acabaram por ser 25 em 27), aumentando o risco de diluição e de imobilismo. Foi um erro. Há dinheiro da Comissão para investir em projectos (que incluam vários países), destinados a melhorar as capacidades militares e a investir mais em I&D. É um estímulo.

4. E chegamos à questão que dividiu o Conselho Europeu e que conta uma história ainda muito preocupante sobre a saúde da Europa e das suas democracias. Os refugiados e a imigração ilegal são hoje um tema central das eleições europeias, capaz de fazer e desfazer partidos, de criar clivagens impensáveis e, em primeiro lugar, de alimentar os movimentos populistas e nacionalistas que ameaçam as democracias europeias e, como tal, a própria integração. A vitória de Macron foi saudada como o grande acontecimento político que travou a vaga antieuropeia. Le Pen passou de ameaça quase fatal a um fenómeno controlado. Por pouco tempo. A eleição quase certa de Laurent Wauquiez para liderar Os Republicanos de Sarkozy é tudo menos tranquilizadora. Wauquiez não esconde que o seu discurso se aproxima bastante da Frente Nacional em matéria de imigração, com a primazia dada à islâmica. Diz que os apoios sociais são um “cancro”. Quer uma direita que seja mesmo de direita. Acusa Macron de “não amar a França” porque defende a globalização. Começamos a habituar-nos a este discurso, que não é apenas próprio dos partidos que se situam na direita mais extrema, mas começa a fazer parte da linguagem de partidos que foram até agora centrais nas democracias europeias. Os Republicanos sofreram um revés histórico com a eleição de Macron. O Presidente foi buscar alguns dos seus dirigentes mais moderados para o governo. Na Assembleia Nacional, os seus deputados cindiram-se. Wauquiez quer encontrar espaço pela maneira mais simples. Como em outros países europeus, a cedência ao discurso identitário é o caminho mais fácil mas também o mais perigoso. Os “outros” são o inimigo interno. “Em 2018, o desafio populista vai continuar”, escreve Mathew Goodwin da Chatham House de Londres. Ignorar o problema não resolverá nada. Enunciar os valores universais que fazem parte das democracias liberais é um dever mas já não chega. É preciso ir ao encontro dos que ficaram para trás ou que têm medo do futuro, o que exige uma enorme coragem política e torna uma dimensão europeia indispensável. Na véspera da cimeira, assistimos a um confronto aberto com Donald Tusk, que defendeu publicamente o fim do sistema de quotas para a distribuição dos refugiados, que pretendia aliviar a carga daqueles que aguentaram a maior pressão, da Itália e à Grécia, passando pela Alemanha. A reacção do comissário responsável pela imigração (por sinal, um grego) foi muito dura. Ontem, a chanceler não escondeu a sua profunda irritação. São os países de Leste (o grupo de Visegrado) que rejeitam as quotas com total veemência. A sua intransigência adiou uma decisão para Junho. O problema é que ela faz parte de uma tendência para “torcer” o Estado de Direito, que esses governos praticam sem qualquer pudor, como é o caso da Hungria ou da Polónia. Não há democracia por metade. No dia em que a União Europeia cedesse num princípio que está inscrito na génese da integração, a Europa mudaria de natureza. Até agora, tem sido a Comissão a tratar do assunto junto dos governos infractores, com alguns resultados em Budapeste e nenhuns em Varsóvia. Os sinais de racismo ou de anti-semitismo já não são disfarçáveis e sabemos como são contagiosos. A questão é política e é vital. Vai ter de ser o Conselho Europeu a tratar dela, quanto mais cedo melhor. O risco é o mesmo: a China e a Rússia estão disponíveis para ocupar o vazio.

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