www.sabado.ptFlash - 17 dez. 05:00

Jerusalém, Jerusalém

Jerusalém, Jerusalém

Murmura-se muito sobre o sítio, o símbolo, as origens e as consequências. Mas o que vale verdadeiramente Jerusalém, além do turismo religioso e das ruminações políticas de vários clãs, tribos, nações e Estados?

Quando, ainda jovem, vivi nos EUA, tive, durante três anos, como anfitrião generoso Markus Krausz, médico de origem austríaca e sobrevivente do Holocausto. Quando nos via chegar da missa dominical, observava sempre, entre o bondoso e o irritado: "O padre continua a dizer-vos que foram os judeus que mataram Jesus, não é?"
Não há muitas fotografias mais impressionantes do fim da Guerra dos Seis Dias do que a imagem de Shlomo Goren, no monte do Templo, a tocar a trombeta ritual do triunfo. O intransigente rabino principal das Forças de Defesa de Israel queria assim significar o regresso das tribos hebraicas ao seu centro mais querido.

Na colina, claro, ficam os lugares da memória. A mesquita de al-Aqsa, erguida por Abd al-Malik no século VIII, as cúpulas do Rochedo e da Corrente, as fortificações de Herodes, as ruínas dos templos de Salomão e Zerubadel, o Muro Ocidental, dito das Lamentações, os restos da conquista pelos primeiros cruzados, em 1099. Ali tombou assassinado, em 1951, o rei Abdullah I da Jordânia, bisavô do actual monarca. Ali andam em silêncio reverente, ou oração, fiéis das três grandes religiões monoteístas reveladas.

Mas de quem é Jerusalém?
Dir-se-á, em primeiro lugar, que é dos 878 mil judeus ocidentais e da grande área metropolitana, dos 375 mil palestinianos que residem a leste, ou dos 20 mil cristãos do centro.
Demografia e democracia.
Quando vou visitar os activistas de direitos humanos do B’tselem, David, Gilad, Ido, Paul, Vered, Orly, Yael, Adam, tantos outros, israelitas num bairro muçulmano, olho com emoção a vida comum, solidária, afável, normal, de gentes que se decretou serem incompatíveis.

O problema é a História. Esmaga e tempera, exalta e adultera, absolutiza e relativiza. É verdade que Israel criou ali uma civilização, seguiu ali uma fé, construiu ali maravilhas de paz e engenhos de guerra. Mas antes do período judaico tivemos cananitas, egípcios do novo reino e jebuseus. E depois da conquista romana e da queda do império tivemos uma Idade Média dominada por persas e árabes, e os séculos da suserania otomana, até ao fim da Primeira Guerra.

Se é verdade que Jerusalém nunca foi capital da Palestina, porque esta nunca existiu como estado, não é menos verdade que só é capital de facto do estado israelita por causa das operações militares Danny, Kedem, Nachsohn e Yevusi, em 1948, que tomaram a parte oeste, e do triunfo de 1967, que expulsou a Jordânia da metade leste.
Se é verdade que na Cidade Santa está a origem do luminoso reino de Judá, também é certo que sobre os seus escombros existem muitos séculos de glória muçulmana e de lágrimas cristãs.

O argumento temporal leva-nos assim pouco ao presente, porque nos conduz demasiado longe.
E há a política: desde a anexação de 1967 e da "legalização" de 1980, as instituições políticas judaicas estão na cidade, com excepção do Ministério da Defesa.

O reconhecimento de facto disto levou a Rússia a declarar Jerusalém Ocidental como capital do estado judaico, em Abril, sem que isso escandalizasse o mundo. E os checos têm mantido a mesma posição.
Claro que Trump quer acelerar a história, mas com riscos.

Acha que não haverá uma terceira Intifada (as outras duas convulsões causaram 7 mil mortos), que os protestos se dissipam, e que, ante o facto consumado, poderá voltar atrás: reconhecer depois dois estados, atribuir à Palestina a legitimidade para reclamar o Leste como capital, transferir a embaixada em Israel para Ocidente e uma futura missão na Palestina para Oriente. Deixou tudo isso implícito.
Mas as massas podem não querer ouvir os detalhes. 

P.S.: Obrigado pelos que me escreveram sobre Angola. Tomo nota de tudo. E concordo em dois pontos: João Lourenço não tem tempo ilimitado para melhorar a vida do povo, e os processos judiciais em curso, entre Portugal e Luanda, decidem-se nos tribunais, serenamente. Não em nervosos chás-canastras entre iluminados.

Para já, um triunfo
Haider Al-Abadi quadrou o círculo. Especialista em transportes, exilado em Londres, membro de uma família xiita de resistentes a Saddam, tornou -se primeiro-ministro de Bagdade em 2014. Na altura, o velho estado encontrava-se ocupado pelo Daesh em pelo menos 25% do seu território, incluindo a segunda maior cidade, Mossul, e centenas de vilas, estradas, poços de petróleo. Hoje está livre, unificado, e já não resolve a autonomia curda com a repressão cega.
A libertação do negro "Califado" deu-se com a ajuda da NATO, de uma larga coligação árabe, mas também das PMU, milícias às vezes próximas do Irão. Tranquilamente, Abadi tem agora de desarmar os ex-civis, e prosseguir: o Iraque parece viável. 

A corda ao pescoço
No auge da euforia cavaquista, quando saíamos da longa noite de bancarrota, hiperinflação e desequilíbrios orçamentais, escrevi sob contenção. Achava que o novo Estado devia criar uma espécie de comissão pedagógica, que aconselhasse o público à maneira de gastar sem desatino, e poupar com tino.
Uma década e meia depois veio a crise financeira, o ruir dos bancos, incluindo os mais arrogantes. Entretanto, disseram-nos que tudo ia mudar. Mas muitos analistas perturbam-se com um regresso furioso do crédito fácil: muitas famílias estão outra vez a endividar-se até ao pescoço.
O regime, claro, assobia para o ar. Não é "neoliberal" (cruzes, canhoto), mas quer que o "mercado" siga o seu curso. 

Brilho na escuridão
Com uma guitarra cristalina, João Espadinha (na foto) lança Kill the Boy (Sintoma). De Gian Carlo Menotti, Ahmal e os Visitantes da Noite, uma ópera sobre o verdadeiro Natal (17), no Centro Vale Flor, em Guimarães. E o grupo de Eduardo Paniagua lembra músicas cristãs, árabes e sefarditas, em Leiria, na Igreja da Misericórdia, no mesmo dia. Imperdível é o concerto de música medieval em Ponte de Lima, a 22, na igreja matriz, dirigido por Maurício Molina.
Portugal deve orgulhar-se da grande Orquestra Ligeira do Exército: toca um concerto de Natal, no Centro Cultural das Caldas da Rainha, a 20. E Oliveira do Hospital renasce das cinzas. A 23, concerto solidário, com Quinta do Bill e José Cid. Bem-hajam.

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