observador.ptMaria João Avillez - 22 nov. 06:59

Os bons alunos

Os bons alunos

A plateia do país percebeu muito bem que não fora o insignificante resultado eleitoral do PC e Jerónimo não cuidaria hoje com tanto afã e tamanho zelo da função pública.

1. A Bélgica além de boa hospedeira do extraordinário Puigdemont revelou-se — já suspeitávamos — uma boa amiga: o tribunal de Bruxelas adiou a sua decisão sobre o processo do lider catalão. Já deve ser o pouco que lhe resta mas em saga tão conturbada é um bem vindo dois-em-um: a causa independentista recebe de borla mais um pouco de oxigénio e a sua campanha eleitoral recebe o bónus de continuar por mais uns dias como se nada se tivesse passado.

Mas o pior é que passou e o que se passou deixou marcas (e dizem-me que feridas incuráveis).

Eu sei que há pior e basta só pensar na Alemanha, por exemplo (e pensemos nela com um arrepio). Sucede que também sobre a Catalunha e o seu actual desvario chega a não se saber o que pensar. Sabe-se que Puigdemont é de opereta mas os custos da encenação podem ascender ao trágico. Não se sabe o desfecho da história mas sabe-se que — também me dizem — este ano quase não deve haver Natal em Barcelona e eis um eloquente dado sobre os estragos feitos. O Natal é um momento de celebração e festa para muita gente e, religioso ou não, a data e o seu valor simbólico reúnem e agregam. Juntam. Este ano não há “ambiente”. E, se houver, a alegria nas famílias, nos locais de trabalho, nos amigos, será postiça como nos maus cenários. O mais banal gesto quotidiano — frequentar a escola, apanhar um táxi, entrar no emprego, escolher um restaurante, ir a um supermercado — está corroído pelo ácido da divisão.

Nas grandes cidades, o ar catalão está contaminado. É certo que o credo independentista era – é — recitado todos os anos (desde 1714!) no dia 11 de Setembro em grandes manifestações em Barcelona. E desde 2012 (ou 2013, talvez) quando o “Estatut” foi rejeitado por Madrid, tais reuniões multiplicaram-se, ampliaram-se, passaram a ser multitudinárias. Ou seja, sempre houve cultores e defensores da independência. Mas é preciso recordar porém que, desde a Constituição de 1978, os catalães — embora mal amando o que alguns deles vêem como a omnipresente e omnívora cabeça de Castela — gozam de uma imensa autonomia em quase todos os âmbitos: Educação, Saúde, Cultura, Transportes. Mudaram inclusivamente a língua do ensino público para catalão, sem a oposição de Madrid face a um gesto tão pleno de significado.

Catalunha, povo de “oprimidos”? Ou não será mais sério recordar que mais de metade dos catalães não se identificam com o processo independentista? Que a tal Castela omnipresente e omnívora só surgiu, no céu da Catalunha, após o referendo de 1 Outubro de 2017? Que apenas “alguns” catalães são revolucionários (CUP e afins)? Ou que o motor deste surto independentista é o controle das Finanças, depauperadas pela crise de 2008/2015 que deixou com alto desemprego e baixa saúde a Catalunha?

2. Antes de tudo isto a vida, tant bien que mal, ia seguindo o seu curso: região, sociedade e povo conviviam entre si com naturalidade em vez de ferocidade. Com ideias diferentes mas honrando a cidadania. Face porém ao “circo Puigdemont” e a todos os desacreditantes “números” a que vimos assistindo e foi preciso ver para crer) interpretados por um casting de vigésima ordem política, o sonho independentista parece ter-se incumprido na sua própria ruína. Estilhaçou-se contra si mesmo. Dentro e fora da Espanha não se encontrará com facilidade e empenho alguém que aplauda ou sequer concorde — no fundo e na forma — com cada um dos inúmeros episódios assinados desde há muito por Puigdemont&amigos.

A falta de verosimilhança e de bússola — e de decorro — no verbo e no gesto do líder da Catalunha torna-o irrecomendável aos olhos da sua região e do mundo. Uma má história.

3. Enquanto o governo espanhol deseja — e deseja bem – um amplo consenso político-partidário na procura do melhor nome para substituir o Fiscal General del Estado, José Manuel Maza, que morreu subitamente há dias na Argentina, nenhuma sondagem dá vantagem nem alento aos (desunidos) partidos que concorrem às eleições de 21 de Dezembro com a bandeira da independência como mote e meta.

O dr. Soares gostava de dizer que “até ao lavar dos cestos havia vindima”, e é que a politica ame a surpresa, não se prevê que, apesar do mau momento que atravessam as sondagens, esta anti-epopeia dos independentistas chegue a qualquer porto que os salve de si mesmos.

4. Lembro-me bem de Puigdemont. Foi em Janeiro de 2016 e eu estava em Madrid para me aperceber in loco e ao vivo da complexa situação política espanhola que na altura lá se vivia, quando inopinadamente ele entrou em cena. Sobre a geral e constrangida perplexidade que isso então causou aqui dei conta, num texto onde contava e elaborava sobre as agruras políticas dos vizinhos e que agora fui reler, descobrindo que já lá estava quase tudo.

Puigdemont surgiu, de repente e sem pré-aviso na Generalitat catalã, vindo de Girona, onde era alcaide. Aterrou no último minuto, saído da cartola do anterior presidente, Artur Mas — impedido de concorrer — para o substituir na corrida eleitoral. Puigdemont, então com 53 anos e dono de farta cabeleireira, era um coelho irrequieto e inquieto. Um “pega e larga”, arqui-activo e obviamente separatista. Comprometendo-se a aviar a independência da Catalunha em 18 meses, “no máximo”, ignorou o Rei e omitiu a Constituição no seu discurso. A omissão voluntária das fundações do Estado espanhol indicava o nunca visto: o novo presidente do governo catalão anunciava aos quatro ventos para Madrid ouvir que não seria fiel nem de confiança.

Escorando-se na “vontade do povo da Catalunha”, mas invocando apenas “o ali representado naquele parlamento”, Puigdemont foi de imediato acusado publicamente de “traidor” . Foi-o em muitos quadrantes da media e da rua, enquanto se evocava a “ inevitabilidade de consequência legais” para o seu desassombro. Houve constitucionalistas a analisar as implicações da forma e do conteúdo do discurso do novo presidente, que aliás o proferiu, tal como em 2012 o fizera Artur Mas, com a foto do Rei tapada por um cortinado. Em 2012 o Rei era Juan Carlos, em 2016 foi Felipe VI, mas o gesto foi o mesmo. “A devastação da forma alcançou hoje um nível inédito”, escrevia-se (pesarosamente) no El Mundo, enquanto o presidente do Congresso se indignava: Artur Mas, antigo presidente da Catalunha, dera cabo de tudo: da sua região, do seu partido e da sociedade catalã, mas tinha agora um discípulo à altura.

Parece que teve. Um óptimo discípulo.

Resta saber para que servirá — serviu? — tão bom aluno.

5. Após a vitória dos professores não custava antecipar que “a esquerda e sindicatos falem em porta aberta a toda a função publica” (DN). Jornais e outros meios fizeram o favor de nos explicar, como se fosse preciso, que já havia mais carreiras a reivindicar o mesmo “tratamento” dos professores. Facto que de resto logo parecera uma “inevitabilidade” ao líder máximo comunista, Jerónimo de Sousa: não era essa reivindicação uma pura questão de “justiça”? Era: uma vez que a porta já se entre-abrira, com facilidade agora era escancará-la de vez para que entrassem todos. Os “todos” da função pública, claro está, que a mim não havia quem me abrisse porta nenhuma com tamanha solicitude. O sol quando nasce é para quem vota e a conta da despesa é para quem vier depois.

O líder comunista esqueceu-se, porém, de uma coisa não despiscienda: esqueceu-se que toda a plateia do país percebeu muito bem que não fora o insignificante resultado eleitoral do PC nas últimas eleições e Jerónimo de Sousa porventura não se afadigaria com tanto afinco e tanto afã. Outro bom aluno.

Tudo tão previsível. Tudo tão irresponsável.

6. É como lhes digo: há demasiadas sombras em volta.

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