www.sabado.ptFlash - 22 nov. 10:45

Ratatui

Ratatui

Agora marcam-se jantares de Natal, noites de passagem de ano, escolhem-se espaços e chefes, por vezes com a voracidade de quem só quer mais um carimbo no seu passaporte, outras vezes com este sentido de sentir-se todo em cada pedaço da vida que se saboreia.

Lembro-me bem da azáfama da Expo 98 – penso, aliás, que já em 1992 passei pelo mesmo em Sevilha: havia uns caderninhos (chamar-lhe-iam "passaportes"?) onde eram apostos carimbos por cada pavilhão que visitássemos da exposição. E, claro, havia os caça-carimbos, que, no final do dia, exibiam, orgulhosos, o resultado da correria. Anos mais tarde, olhava para a série "Quatro Estações", de Giuseppe Arcimboldo, no Louvre, quando um "fotógrafo" afoito disparou a sua objetiva quatro vezes e seguiu. Tenho dúvidas de que tenha demorado mais de 20 segundos. Na altura, não havia Instagram, mas estou certo de que esse mesmo "fotógrafo" teria exibido os seus postais com orgulho na rede social.

Por isso, gosto tanto de ratatouille, ou do que o filme da Pixar pretende retirar de um prato que evoluiu de desenrascanço local e até militar para a degustação gourmet de uma cozinha em recuperação. A personagem principal do filme começa por encontrar no lixo cada pedaço, fazendo aquilo que só mais tarde vi na minha filha mais nova: cheirar todo o naco de comida. Depois saboreia cada tom, permitindo-se misturá-los numa melodia que é dos ingredientes, mas sobretudo sua porque fez deles seus. Ao lado, o irmão enfarda com voracidade, mas não se nutre, porque se esquece de que todos os sentidos precisam de alimento que se deixe repousar.

Eu como numa pressa que insulta a comida. Habituei-me assim, na lógica eficiente de colégio interno, pelo que, a custo, por vezes, lá imponho pausas de contemplação. As mesmas que, ao contrário, consigo ter naturalmente quando vou a um lugar e me deixo envolver por ele; não tanto pelo postal que levo para partilhar, mas pela vivência que extrai um pouco mais de mim – desse "eu" que vou tentando conhecer e criar.

Agora marcam-se jantares de Natal, noites de passagem de ano, escolhem-se espaços e chefes, por vezes com a voracidade de quem só quer mais um carimbo no seu "passaporte", outras vezes com este sentido de sentir-se todo em cada pedaço da vida que se saboreia. Eu cá adoro o que os carimbos dizem sobre as oportunidades que tive, mas não quero uma vida só de carimbos, daqueles que são oportunidades perdidas do que se olhou, mas ficou por ver, do que se engoliu, mas ficou por saborear, de onde se esteve, mas ficou por viver.

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