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Robert Mugabe. O homem que foi o Zimbabwe sai rejeitado por todos

Robert Mugabe. O homem que foi o Zimbabwe sai rejeitado por todos

O percurso de Robert Mugabe confunde-se com a História do país pelo qual lutou e que baptizou. Depois de 37 anos, sai no derradeiro momento em que lhe é ainda garantida alguma dignidade.

Robert Mugabe nunca gostou de ficar de lado das grandes decisões. Até no suspiro final da sua vida política recorreu a um exercício de autoridade. Depois de dias de avanços e recuos em Harare, o poder para o afastar da presidência do Zimbabwe ao fim de 37 anos estava no Parlamento. Porém, quando já ninguém esperava, decidiu recuperar a iniciativa, através de uma carta lacónica, mas com a frase que todos ansiavam: “Eu, Robert Gabriel Mugabe, apresento formalmente a minha demissão como Presidente do Zimbabwe, com efeitos imediatos.”

O presidente do Parlamento, Jacob Mudenda, tinha acabado de dar início à sessão onde seria apresentada a moção proposta pela União Nacional Africana do Zimbabwe-Frente Patriótica (ZANU-PF), o partido maioritário, para abrir um processo de impeachment contra Mugabe. Para trás tinha ficado uma semana alucinante, pródiga em imagens que poucos achariam possíveis dias antes.

Mugabe resistiu aos apelos generalizados para que abandonasse o poder até ao limite dos limites. Pelo meio viu os veteranos da “guerra da libertação”, onde forjou a sua legitimidade, liderarem manifestações contra si. Viu ainda os camaradas de partido apoiarem de forma unânime a sua demissão de primeiro secretário – e em seguida celebrarem o feito. Estava agora prestes a ser afastado através de um julgamento parlamentar em que era acusado de ser a raiz de todos os males do Zimbabwe.

A concretização de um impeachment “teria sido muito mais embaraçosa para Mugabe”, diz a académica zimbabweana Chipo Dendere. Fala ao PÚBLICO, por telefone a partir do Massachusetts (EUA) onde vive desde 2004, poucos minutos depois do anúncio da demissão de Mugabe e mal consegue esconder os risos de felicidade. Estava a acompanhar em directo uma emissão da sessão parlamentar quando tudo aconteceu. “De repente, entra um general do Exército com uma carta na mão, e aí eu soube de imediato – ele demitiu-se”, conta.

Dendere acredita que Mugabe escolheu o derradeiro momento que lhe garantia ainda alguma dignidade para sair. “Ele percebeu rapidamente que não tinha apoios suficientes no Parlamento e que o seu discurso sobre reconciliação no domingo não fez nada para acalmar a tensão na ZANU-PF”, afirma.

Tal como esperado, o homem que se segue é o ex-vice-presidente, Emmerson Mnangagwa, o outro grande protagonista da crise que se abateu sobre o Zimbabwe. Representa a ala dos veteranos da guerra que quer preservar o seu poder, face ao desafio que estava a ser preparado pela primeira-dama, Grace Mugabe. Perante a perspectiva de perderem poder, Exército e partido decidiram agir.

De libertador a ditador

E assim é encerrado um capítulo que durou quase quatro décadas em que Mugabe e Zimbabwe foram praticamente sinónimos. Na verdade, é com o ex-professor que passa a existir um Zimbabwe, em 1980. Antes, foram os anos da guerrilha contra a minoria branca que governava a Rodésia, a chamada “guerra de libertação” que continua a ser um garante de legitimidade do regime até aos dias de hoje.

O activismo marxista e anti-colonial valeu-lhe uma década na prisão, entre 1964 e 1974, seguido de um exílio em Moçambique. Foi a partir de Maputo que lançou a ZANU na via armada, entrando em confronto com a Rodésia de Ian Smith. Era o “homem culto da guerrilha”. O mundo olhava-o então como um combatente contra a opressão colonial e saudou a sua eleição como primeiro-ministro negro do recém-baptizado Zimbabwe.

Mugabe não perdeu muito tempo até voltar a sua personalidade implacável para os antigos companheiros de armas. A sua prioridade foi ajustar contas com Joseph Nkomo, o líder da ZAPU, o movimento de guerrilha do qual a ZANU divergiu anos antes. Para além de diferentes orientações ideológicas – a ZANU próxima da União Soviética; a ZAPU maoísta – as duas organizações representavam também duas etnias. Mugabe era shona, a etnia maioritária no Zimbabwe, enquanto Nkomo pertencia aos nbedele.

Em 1982, sob pretexto de lidar com uma insurreição na província de Matabeleland, Mugabe envia a 5.ª Brigada do Exército – uma unidade especial que tinha recebido treino na Coreia do Norte – para conter a revolta, que acaba por se saldar na morte de 20 mil pessoas, na sua maioria nbedele. Temendo pela sua segurança, Nkomo procurou refúgio em Londres e permitiu a incorporação da ZAPU pela ZANU.

A chegada à presidência acontece em 1990, pouco depois de Mugabe ter promovido uma alteração à Constituição que fortaleceu o cargo – até aí meramente simbólico. O seu novo alvo passou a ser os fazendeiros brancos que ainda detinham muitas propriedades agrícolas no país. Milhares de hectares foram expropriados à força, muitas vezes de forma violenta por grupos criminosos que as autoridades deixavam actuar com impunidade.

A factura está a ser paga desde então. A produção agrícola caiu a pique, o crescimento económico dos primeiros anos pós-independência foi rapidamente revertido e o desemprego tornou-se generalizado. Ao mesmo tempo, o Zimbabwe tornava-se um pária internacional, alvo de sanções económicas que acentuaram o colapso económico. Milhões de pessoas emigraram, sobretudo para a África do Sul. Em 2008, perante uma inflação estratosférica, a moeda local foi mesmo abandonada.

Isolado no seu trono, Mugabe estava cada vez mais intratável e despótico. Em 2008 perde na primeira volta das eleições presidenciais para o líder sindical Morgan Tsvangirai, mas a violência contra os seus apoiantes obrigam-no a desistir. Tsvangirai acabaria por liderar um Governo de coabitação de pouca vida.

A era de Mugabe chegou ao fim, mas ninguém parece querer julgamentos. Nas ruas, festeja-se de forma frenética. Milhares de pessoas dançam, cantam e agitam bandeiras, ao som das buzinadelas dos carros que desfilam nas avenidas de Harare. “Não acho que seja fácil esquecer o que ele fez pelo país”, diz Dendere.

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