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Opinião. Pensar o passado fora da História

Opinião. Pensar o passado fora da História

Quem não negar a História perceberá que não há absolutos, nem mesmo no campo da moral.

O sociólogo moçambicano Elísio Macamo respondeu muito recentemente a um artigo de minha autoria. Ao contrário das coisas quadradas e paupérrimas que são muitas vezes escritas por aqueles a quem já chamei “flagelantes”, o seu é um texto com ideias. É verdade que há partes em que parece que Elísio Macamo leu a correr e que não entendeu bem o que eu escrevi. Ao contrário do que diz, eu não parto “do princípio de que Portugal deve pedir desculpa aos africanos”; pelo contrário, tenho dito muitas vezes que o país não deve fazê-lo, e tenho explicado porquê. É também verdade que alguns dos raciocínios de Elísio Macamo assentam em estereótipos errados ou muito discutíveis, como, por exemplo, o de que teriam sido “razões económicas que ditaram o fim da escravatura”. Desde a década de 70 que graças ao trabalho de Seymour Drescher (Econocide) e de outros historiadores sabemos que o que levou à abolição da escravatura foram, sobretudo, motivações de ordem ideológica e política.

Mas esses mal-entendidos são periféricos e de somenos importância. A parte verdadeiramente interessante e importante do texto de Elísio Macamo é aquela que responde directamente à pergunta que eu fiz e que dava título ao meu anterior artigo no PÚBLICO: “Quantas vezes terá Portugal de pedir desculpa (pela escravatura)?” — perguntava eu. “Quantas vezes forem necessárias”, diz Elísio Macamo, mas acrescenta — e isso é o mais interessante — que Portugal não deve nem tem de apresentar desculpas aos povos africanos, mas sim a si mesmo. Porquê? Por razões morais: “Portugal deve pedir desculpas a si próprio por ter violado os seus próprios valores.” Ou seja, Elísio Macamo acredita que os valores e, sobretudo, a percepção desses valores, em que os portugueses se banham agora, são exactamente os mesmos em que os seus antepassados se banhavam no século XVII, por exemplo. Ora, de facto não são e é esse desfasamento, essa não coincidência, que constitui o cerne da questão e o cerne da enorme confusão de planos não apenas de Elísio Macamo mas de todos os que agitam a questão da escravatura e insistem num pedido de desculpas com esse e outros fundamentos equiparados.

Essas pessoas partem do princípio de que a percepção dos valores é imutável e de que não houve mudanças nessa área, o que é completamente falso. Quando Elísio Macamo enuncia o problema — será que os valores que defendemos nos “permitem fazer certas coisas?” — estará provavelmente à espera de uma resposta simples e linear, mas a resposta verdadeira só pode ser dupla: 1) não, agora não permitem; 2) mas no século XVII, por exemplo, permitiam. Os homens doutos que nessa época foram repetidamente chamados a pronunciar-se sobre isso concluíram que sim, permitiam, em certas circunstâncias, ainda que reconhecessem que, em muitos casos, o tratamento dado aos escravos e as modalidades assumidas pelo tráfico eram ilegítimas e deviam ser reguladas e punidas de acordo com a lei. Não havia abolicionistas no século XVII. A leitura e a hierarquia dos valores não era a que é agora. Essas coisas têm, como todas as outras, uma história e quem quiser perceber a nossa relação com o problema da escravatura pode, com proveito, seguir essa história na obra verdadeiramente essencial de David B. Davis, The Problem of Slavery in Western Culture.

Em suma, os valores que os portugueses quinhentistas ou seiscentistas defendiam, e o entendimento que tinham desses valores, permitiam-lhes traficar e escravizar muçulmanos e pagãos. Outro tanto acontecia, aliás, com os referidos muçulmanos e pagãos relativamente às gentes que escravizavam. Elísio Macamo e muitas outras pessoas não vêem ou não percebem isso porque sofrem daquilo a que Joseph C. Miller (The Problem of Slavery as History) chamou “presentismo”, isto é, têm uma abordagem ética mas não uma abordagem histórica das realidades passadas. Pensam fora da História. Pensam como se o passado fosse presente e se regesse pelas regras e princípios de agora. No fundo, negam a História, e, olhando a tudo o que por aí se lê e ouve, não deixa de ser surpreendente a quantidade de pessoas que a negam, isto é, que não conseguem (ou não querem) pensar historicamente. Quem, pelo contrário, não negar a História e aceitar que todas as coisas humanas mudam no decurso do tempo perceberá que não há absolutos, nem mesmo no campo da moral. Perceberá que foi só quando a percepção dos valores mudou e se tornou absolutamente incompatível com a manutenção da escravatura (algo que, em traços gerais, aconteceu no século XIX) que Portugal pediu desculpa, como mostrei no meu anterior artigo no PÚBLICO. Fê-lo porque, nessa altura, o país se via a si próprio como único responsável pela abominação escravista. E fê-lo cem, mil vezes, como também referi, ou seja, tantas vezes quantas julgou necessárias, para usar a terminologia de Elísio Macamo. Já basta assim. Até porque hoje em dia temos uma visão muito mais completa e complexa das coisas e das várias responsabilidades envolvidas no assunto.

E será que ao recusarmo-nos a pedir desculpa estamos a recusar-nos a “renovar o (nosso) compromisso com esses valores”, como acusa (ou adverte) Elísio Macamo? Não, essa é uma falsa questão. A rejeição da escravatura está interiorizada na cultura europeia, a tal ponto interiorizada que não carece de “renovações”. A classificação do tráfico de escravos como “crime contra as gentes” — pois era esse o conceito então usado — foi introduzida pelos primeiros abolicionistas ocidentais, está consignada nas leis e tratados anti-escravistas sucessivamente aprovados de há 200 anos para cá em toda a parte do Ocidente e, o que é mais importante, está profundamente gravada na mente e na sensibilidade de europeus e americanos. Não precisa de ser renovada nem reactivada.

Elísio Macamo diz-nos, a concluir o seu texto, que este assunto “não tem nada a ver com os africanos. Tem a ver com os europeus”. Estou inteiramente de acordo, desde que se troque a palavra “europeu” por “ocidental”. Isto tem a ver com sentimento de culpa. A culpa do ocidental, comparativamente próspero e rico, face aos outros — nomeadamente aos africanos, que são pobres —, e a convicção de que a pobreza deles tem a marca de água de erros nossos. Erros que seria necessário expiar e continuar a expiar, per saecula saeculorum. Elísio Macamo percebe muito bem esse sentimento e é por isso que nos pergunta como devemos nós reagir, nós os “herdeiros dos privilégios estruturais”, quando pensamos nas “condições em que o (nosso) bem-estar foi historicamente construído”. É essa pergunta (e a inquietação que ela provoca) que explica este frenesim, tanta gente a interessar-se pela antiga escravatura e a exigir actos de contrição. É verdade que também há razões de estratégia política de grupos organizados, que já analisei em artigo do passado Maio. Mas o principal combustível do tumulto a que temos vindo a assistir é o habitual sentimento de culpa do ocidental face ao mundo de desigualdades e de pobrezas que tem perante os olhos. Sim, nisso Elísio Macamo tem absoluta razão: este assunto nada tem a ver com os africanos. É um problema dos ocidentais — de certos ocidentais — com a sua História.

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