rr.sapo.ptrr.sapo.pt - 18 out. 22:09

​Júlio fez-se bombeiro e impediu a explosão de 40 toneladas de gás

​Júlio fez-se bombeiro e impediu a explosão de 40 toneladas de gás

Júlio Nunes está há mais de 30 anos no negócio do gás de consumo doméstico e nunca esteve tão perto do perigo de explosão como na madrugada de domingo.

Não se sabe exactamente onde o fogo começou, mas o certo é que passou do mato de Oliveira do Hospital para os armazéns e empresas do parque industrial. Ao longo da Avenida Calouste Gulbenkian, com vários lotes empresariais, é visível o rasto das chamas e o mau estado dos armazéns salta à vista.

Num desses lotes fica a J. Guerra, uma fábrica de acabamentos têxteis que ficou completamente destruída. “E as centenas de pessoas que trabalhavam ali”, descreve o vizinho Júlio.

Mais adiante na avenida, no lote seguinte, uma empresa de construção civil foi igualmente consumida pelas chamas. Apenas uma vedação de rede separa o telheiro onde estavam os veículos das obras, agora apenas caraças de metal, do parque da CSA. O negócio de venda e distribuição de bebidas e gás engarrafado é o trabalho e o orgulho de Júlio de Brito Nunes. Olha-se em volta e quase não se percebe como foi possível evitar uma tragédia maior.

“Tenho aqui no parque umas 40 toneladas de gás”, aponta Júlio. “Ou serão 50, neste momento não sei precisar.” Agarra-se à racionalidade os números, como se precisasse de se preparar para descrever o que aconteceu. Contabiliza 50 mil euros de prejuízo, mas "podiam ser mais, muitos mais". Não fosse o seu feitio e uma boa dose de sorte.

“O lema desta empresa é a segurança. Sempre que um cliente me diz ‘senhor Júlio, parece-me que tenho uma fuga em casa’ eu é que sou o bombeiro. Sou o primeiro a ir a casa da pessoa verificar onde está a fuga”, exemplifica.

Júlio já estava habituado a evitar o fogo em casa dos clientes, mas desta vez precisou de ser bombeiro em causa própria.

O relógio marcava uma da manhã da madrugada de domingo passado quando chegou com o genro Pedro ao lote da CSA. “Cheguei aqui à zona industrial não havia luz, não trazia chaves comigo, não trazia nada. Tivemos que saltar as vedações para galgar para o interior do parque." As primeiras chamas que viu atacavam nas traseiras do armazém das bebidas e foi por aí que começou o combate às chamas.

“Quando entro, vejo o armazém completamente inundado em fumo. E no fundo, onde estavam as caixas com bebidas, uísques, vinhos do Porto, tudo o que era caixas de cartão estava a arder”, recorda.

Água da rede para apagar o fogo não havia. Júlio fez o que pôde com o que tinha mão: garrafas de 1,5 litros e garrafões de cinco litros de água que ali tinha para vender. Perdeu a água engarrafada, mas salvou o resto das bebidas. Só depois de ter apagado o fogo no armazém é que se lembrou do gás que tinha fora.

“Todas as labaredas vinham ali daquele material muito combustível e daquelas sete ou oito viaturas ali perto da minha vedação”, recorda. O tempo passava, comunicações não havia e parecia impossível pedir socorro para evitar a explosão iminente das botijas de gás. O que valeu a Júlio acabou por ser uma árvore caída na estrada.

“Entretanto já eram três da manhã quando passam aqui à frente dois carros de bombeiros, que abrandaram para se desviar de uma árvore,” relembra. “Supliquei e quase só faltava ajoelhar-me para que eles ao menos me mandassem cá para dentro uma mangueira”, diz Júlio, contando que, assim que viram o gás, os bombeiros recusaram entrar no lote, “por causa do perigo de vida”.

Nesse momento, Júlio não se conteve. “Vocês estão aqui ao meu portão, não se vão embora, senão eu chamo-vos cobardes para toda a vida", disse-lhes. Os bombeiros ignoraram as ordens do comando e resolveram ajudar. Mas foi o próprio Júlio, já de agulheta na mão, que controlou as chamas que estavam perto das botijas do gás, conta.

“Virei-a para o ar e fiz um rescaldo às garrafas todas de gás que tinha aqui. Tentei arrefecê-las o máximo que pude, com jactos para o ar, nunca directamente", relata. Depois da ajuda da sorte, entrou o saber acumulado em três décadas de profissão. Júlio seguiu à risca o que aprendeu nas acções de formação dos fornecedores do gás.

Naquele momento, apesar do calor do fogo, foi o sangue frio que lhe valeu. “Nunca pensei chegar a um extremo destes”, desabafa. Mas reconhece que já evitou muitos “quase acidentes” em que só faltou uma fonte de ignição para ir tudo pelos ares.

“As companhias recebem a maior parte e muitas vezes só olham aos lucros. Nem sempre dão o apoio que deviam dar, mas eu invisto muito na segurança. É o meu lema e não me arrependo,” admite.

Júlio acredita que pensar “primeiro na segurança e só depois no dinheiro” lhe salvou a vida e o negócio. “Dá-me a impressão que foi com esta minha atitude que Deus me poupou. Porque isto foi um milagre. Havia incêndios a toda a volta… foi quase um oásis. E Deus também. Não tenho dúvidas que a minha coragem não foi suficiente.”

Passado o momento do sufoco, chegou a hora de avaliar os estragos. Júlio conta 50 mil euros em prejuízos, cerca de 10% da empresa destruída. Mas, como as contas estão bem e até tem “uma folga financeira, graças a muito trabalho e uma gestão apertada”, Júlio deu folga aos empregados no dia seguinte.

“Mandei-os para casa porque eles também não estavam em condições anímicas de poderem laborar. Também sofreram danos nas suas propriedades e estavam preocupados com a família e com tudo. Dispensei-os.”

Ao terceiro dia regressou a jornada de trabalho, até porque “a vida continua”. Olha para o lado e as palavras que acabou de dizer parecem não fazer sentido. Manda “um abraço e muita força” para o vizinho que não está ali e repete para o ar: “muita força para levantares a tua empresa.”

De frente para a estrada, com a mata negra na outra margem do asfalto, reconhece que teve “muita sorte”. “Tive sorte, tive muita sorte. Seguramente perdi 10% do meu recheio, mas a vida vai continuar. Está a continuar e estou a laborar na mesma. E a visitar os clientes e a dar assistência aos clientes”, afirma Júlio.

O passado já passou, diz. Agora é pensar no futuro e tratar do presente: continuar a consertar o letreiro – que já foi eléctrico e que agora não passa de um caixilho cinzento.

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