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Uma Lulik. A olhar para o mais longe

Uma Lulik. A olhar para o mais longe

E trazê-lo para Alvalade, para uma nova galeria – aposta de Miguel Leal Rios que em Lisboa abriu um espaço para a arte contemporânea africana, sul-americana e do Médio Oriente

Em tétum, língua nacional de Timor-Leste, onde Miguel Leal Rios passou parte da infância, “uma lulik” quer dizer casa sagrada – as tradicionais palapas onde se reúnem comunidades para discutir política, religião, para discutir tudo. Como se espera que seja uma galeria de arte, pensou quando encontrou, junto à Fundação Leal Rios, um espaço para começar este seu projeto que talvez um dia encontre em Timor a sua última ponta. Final hipotético desta viagem que acabou de começar com a inauguração da “Uma Lulik”, em Alvalade, uma galeria de arte contemporânea a querer preencher o vazio da representação de artistas oriundos de geografias periféricas. Uma Lulik, o nome, é então a sua “homenagem a esse país distante que, entre a Austrália e a China, não pertence a sistema de arte nenhum, onde ele não existe sequer.” Da primeira forma de globalização iniciada pelos portugueses, ficou Timor como símbolo do que é “mais longe, mais pequeno, mais recente, mais tudo”. E por tudo isto “ao fim de contas uma ponta deste projeto”, diz. “Será a outra ponta.”

África, Médio Oriente, América do Sul, são esses os focos, os pontos de partida. Geografias periféricas, poderíamos chamar-lhes. Não Miguel Leal Rios. “É muito comum as pessoas terem um entendimento destas geografias emergentes como África ou a América Latina como algo de periférico, como aliás Portugal foi tratado durante muitos anos.” País periférico na Europa, que já não é, e os argumentos serão muitos mas basta a ARCO Lisboa como exemplo. “Hoje nota-se que Portugal, sendo ainda um país distante, já não é periférico, porque realmente há uma procura muito grande do que se passa cá e a todos os níveis, já não só na arte. Já estamos mesmo no mapa.”

Pelo melhor e o pior diz, Portugal pertence ao mundo já. “Mas durante muitos anos fomos rejeitados por algum motivo, até pela ignorância.” O projeto da Uma Lulik parte daí, justamente. “A minha ideia é falar destas economias emergentes, de artistas que vivem nos seus próprios países, nas suas geografias e que se dividem entre elas e as capitais europeias ou dos Estados Unidos, exatamente para entrarem nos mercados ocidentais e não serem vistos meramente como ‘o artista africano’ ou ‘o artista do Sul da América’, ‘o colorido’. Isto existe mesmo”, critica o galerista. “Não. São artistas que querem expôr, que expõem e que sabem expôr em white cube e que desejam realmente ser vistos como alternativas ao que se passa no mundo ocidental.”

“Colorido” ou nem por isso

Para a exposição que inaugurou com a galeria há dias, Miguel Leal Rios escolheu Joël Andrianomearisoa, artista que se divide entre Madagáscar, onde nasceu, e Paris. “Se perguntar a pessoas do mundo da arte em Portugal se o conhecem, se calhar não. Mas se calhar muitas já viram obras dele sem saberem”, acredita. “E realmente quando olhamos para esta obra magnígica que é a ‘Ausência’, tudo isso acaba como preconceito.”

Melhor obra para começar a desfazer estereótipos sobre arte contemporânea africana do que a de Joël Andrianomearisoa não haveria. Assim vemos em “Ausência”, dividida em duas partes, nas paredes, e “Dead Tree of My New Life”, as duas obras que compõem a exposição que rouba o título à primeira, com curadoria de Delfim Sardo. “A partir desta ideia de uma nova galeria, de um novo começo, uma nova vida, decidi falar sobre este espaço entre tudo o que está no passado e o futuro”, explica o artista que na obra “Ausência” explora a questão das memórias numa espécie de “biblioteca de memórias, de recordações”, pedaços de tecidos de algodão de vários tipos, artesanais, industriais, todos de Madagáscar, “todos da mesma cor, mas todos diferentes, criando texturas a lembrar-nos de tudo o que está para lá do que vemos – aqui, o branco. “Em toda a presença destes elementos materiais, na verdade há algo que está ausente. O corpo está ausente, algo que pertence ao passado está ausente.”

Um olhar para o passado, para o que falta, diz, lembrando bem toda a “presença que é preciso construir para se criar uma ideia de ausência”. E como o presente, objeto da exposição, não é mais do que o lugar entre o passado e o futuro, “Dead Tree of My New Life” serão peças de um jogo para o que se há de montar, de construir. “Algo que ainda não está definido, que não é ainda preciso, o início.” Madeira de carvalho pintado em faces escolhidas como metáfora para a tentativa, para um “questionamento do futuro”.

Chamar arte africana a isto, podemos chamar. “Nasci em Madagáscar, sou de Madagáscar, e isso é um statement, sim”, diz o artista que mantém dois ateliês em paralelo, entre França e o país onde nasceu e onde regressa sempre. “Não que esteja sempre a dizer que sou de Madagáscar ou que use Madagáscar para falar da minha obra. Mas estou sempre a falar na questão da diversidade, de uma origem e de uma identidade diferentes. Nesse sentido, regressar sempre a Madagáscar é um statement para dizer que é possível e interessante produzir algo do Sul para o Norte. É assim que vejo as coisas. Estes tecidos vêm de Madagáscar mas esta madeira vem da floresta francesa. Interessa-me esta dualidade, esta ambiguidade. As pessoas estão sempre a tentar engavetar a questão da identidade em clichés. Sou completamente contra. Por ser de Madagáscar não tenho que me vestir, por exemplo, com trajes tradicionais. Isso não signigica nada.”

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