www.dn.ptAdriano Moreira - 18 out. 01:00

Opinião - A obra do tempo

Opinião - A obra do tempo

No seu livro O Último Voo do Flamingo, Mia Couto atribuiu este desabafo à personagem de seu nome Sulplício: "O tempo é o eterno construtor do antigamente." E a União Europeia - que foi um projeto inspirado por grandes pensadores políticos que de geração em geração foram construindo uma visão corretora do que a inteligência, apoiada nas inspirações, os ajudava a fortalecer a esperança de converter a utopia secular em realidade - de novo dá sinais de voltar-se para a obra do tempo, por vezes desanimada de um futuro específico no globalismo que defronta. Esta velha "luz do mundo", do qual foi centro de referência nem sempre pacífico, acontece-lhe não poder ignorar que a solidariedade atlântica, sua derivada de que se orgulha, está a ser atingida por decisões isoladas dos EUA, cujas consequências eventuais, talvez não pensadas pelos decisores apoiados no verbalismo America first, não contribuem para o prometido "mundo único" da Carta da ONU.

No seu livro O Último Voo do Flamingo, Mia Couto atribuiu este desabafo à personagem de seu nome Sulplício: "O tempo é o eterno construtor do antigamente." E a União Europeia - que foi um projeto inspirado por grandes pensadores políticos que de geração em geração foram construindo uma visão corretora do que a inteligência, apoiada nas inspirações, os ajudava a fortalecer a esperança de converter a utopia secular em realidade - de novo dá sinais de voltar-se para a obra do tempo, por vezes desanimada de um futuro específico no globalismo que defronta. Esta velha "luz do mundo", do qual foi centro de referência nem sempre pacífico, acontece-lhe não poder ignorar que a solidariedade atlântica, sua derivada de que se orgulha, está a ser atingida por decisões isoladas dos EUA, cujas consequências eventuais, talvez não pensadas pelos decisores apoiados no verbalismo America first, não contribuem para o prometido "mundo único" da Carta da ONU.

Os exemplos não são apenas da liberdade das palavras, que aparecem usadas de uma forma diplomaticamente inusitada pelo seu presidente, quando refere o seu mais perigoso opositor, o da Coreia do Norte, esquecendo que o diálogo fica ferido como via não dispensável, e que se as palavras são capazes de aproximar, também podem desencadear destruição. Em 13 de setembro de 2014, o Papa Francisco, o quinto Papa a ser chamado a falar na Assembleia da ONU, avisou: "As nossas palavras podem fazer tão bem, mas também mal, podem curar e podem ferir; podem encorajar e podem deprimir."

Por outro lado, seria necessário que tivesse em conta que não é o profeta esperado pela necessária reorganização mundial, e raras vezes lhe pertencerá, nesse domínio, decidir isolado dos restantes países e governos, de múltiplas culturas e orientações políticas. Muito recentemente anunciou que os EUA vão abandonar a UNESCO porque, segundo as notícias, na questão dramática que é o problema das relações e coexistência entre Israel e Palestina, a orientação ali seguida lhe merecia reparos. Já no século passado, sendo diretor da UNESCO um africano, este pretendeu reformar o sistema mundial da informação com o fundamento comprovado de que o antes chamado Terceiro Mundo tinha do mundo a imagem que as antigas potências exclusivamente dominavam, e parecera-lhe que esse recente mundo libertado devia ser habilitado a ter uma visão específica. Recordo o plenário em que os EUA mandaram uma experimentada embaixadora, vestida à moda do tempo tudo levou, para informar que os EUA "não podiam estar numa organização na qual quem paga não manda e quem manda não paga".

A importância da UNESCO - para designadamente enfrentar a problemática de todas as culturas, etnias e religiões se encontrarem a dialogar em liberdade umas com as outras e a tentar fazer uma história da humanidade como agente não visto com o critério da Torre de Babel - foi ignorada, sendo à França que se ficou a dever orientar a reação à crise. A questão financeira da NATO, avaliada com visão contabilística, parece regressar ao critério ignorando que ela é também parte da segurança dos EUA ao redor da Terra, e já não a enfrentar o Pacto de Varsóvia que morreu.

Antes deste fim da ordem militar com que os dois pactos condicionaram a ordem sonhada para a ONU, por seu lado a União Europeia parecia ignorar que tinha circunstância. Depois de 70 anos de existência, é evidente que a estrutura precisa de ser revista, porque o mundo é de interdependências que cresceram, que novos Estados e grupos de Estados exigem reciprocidade e não aceitam proeminências, que o não controlado globalismo anda a fazer lembrar "o tempo do antigamente", de que os "micronacionalismos" dão prova de presença, como se passa com o independentismo escocês e agora, com alarme para Espanha e para a Europa, a crise desencadeada pela Catalunha, enquanto se procura razoabilidade para o brexit do Reino Unido, sem esquecer o turbilhão muçulmano, as migrações descontroladas e os conflitos armados que por enquanto na Europa se manifestam no terrorismo que não assume o nome de guerra.

Tudo leva a pensar se não se trata apenas de reformar o projeto europeu, como sugere o presidente da Comissão, para lhe facilitar o progresso, ou se a crise levará mais longe e obrigue a discutir se é necessário outro projeto que impeça os "micronacionalismos" e alguns antigos Estados poderosos de regressar à memória do "antigamente", que o projeto europeu em vigor acreditou poder remeter para a história passada definitivamente. Em vez disso, é a governança mundial, mal esboçada, mas, se houver paz, inevitável, que deve orientar a Europa para repensar num equilíbrio que a mantenha no centro decisor, agora com aspirações evidentes vindas de outras latitudes.

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