visao.sapo.ptvisao.sapo.pt - 18 out. 16:39

Histórias de quem ficou sozinho com as chamas

Histórias de quem ficou sozinho com as chamas

Os meios faltaram, já se sabe. E se não fossem as populações a deitarem mão às chamas, os estragos e o número de vítimas a lamentar teriam sido muito maiores. Damos aqui o testemunho de dois heróis anónimos que não foram à cama na noite de domingo para segunda

É ainda em choque, sem dormir ou tomar banho, e com dificuldade em encontrar as palavras certas, que Joana Gomes, 31 anos, nos atende o telefone, dois dias depois do incêndio. Conseguimos falar com ela porque estava com a mãe, 63 anos, em Coimbra, cidade onde trabalha como enfermeira, para umas análises. Na zona dos incêndios as comunicações continuavam difíceis.

Assim que acabassem os exames médicos agendados, regressariam a Folques, terra de onde são naturais. O percurso demorará pouco mais de meia hora. No domingo, porém, Joana só o concluiu ao fim de três longas e angustiantes horas, porque várias vezes foi barrada pelas chamas. Mas nunca desistiu de ir auxiliar os pais e os vizinhos. Quando chegou a Alqueve, uma freguesia vizinha, havia três carros de bombeiros e os profissionais estavam a dar tudo, com o fogo a aproximar-se demais dos seus rostos. Até chegar a casa, apercebeu-se de que toda a Arganil estava em chamas, ao mesmo tempo. Claro que, na ausência de meios auxiliares, deitaram mão ao fogo, como podiam ou sabiam. Os homens, velhos e novos, andaram por todo o lado, montados na carrinha da junta, que tem um tanque de 500 litros. As mulheres tentavam contornar a menor força física combatendo as labaredas com terra ou baldes de água, ajudando a puxar as grandes mangueiras, cortando árvores com moto-serras.

Sem proteção, se não contarmos com os lenços a tapar a boca. Sem formação. "Andei com o jipe do meu pai, mas faltou-me a força para mais", conta. O final desta noite fatídica, em que ninguém descansou naquela aldeia, foi afinal menos infeliz do que noutros recantos. Não há pessoas nem casas a lamentar, porque o povo saiu à rua - depois de chamarem os bombeiros, de saberem que todo o concelho tem apenas sete carros e compreenderem que, naquele contexto, Folques não era uma prioridade. Segunda-feira, 16, trouxe algum sossego, mas de madrugada já estavam outra vez a tirar os carros todos das ruas, porque lhes disseram que havia estradas cortadas nas redondezas e que o fogo ainda andava por ali outra vez. Às três da manhã choveu e a fam��lia de Joana pôde finalmente sossegar.

Dimensão tremenda nunca vista

Na aldeia de Beijós, em Carregal do Sal, os cerca de 900 habitantes estavam descansados e até pensaram em dormir, que no dia seguinte era para trabalhar. Mas, num ápice, o fogo que parecia estar longe chegou até lá.

João Batista, 38 anos, agricultor da região, não se deitou, porque já cheirava muito a fumo. Estava na vizinha Canas de Senhorim, onde tem uma herdade, era já uma da manhã, quando recebeu a mensagem a anunciar tragédia: o fogo estava no concelho. Pegou então no seu trator, na cisterna que leva 7 mil litros de água e no canhão que tem um jato de 30 metros e arrancou "para baixo". O outro veículo, mais pequeno, deixou-o preparado para as eventualidades (normalmente, usa-os para rega ou para dar água aos animais).

Andou a madrugada toda nisso. "Entre as duas da manhã e as 10 não tivemos ninguém que nos acudisse. O povo é que defendeu o que era seu", denuncia. Enquanto andava a lançar jatos de água ao fogo que teimava em invadir a aldeia, o resto da população socorria-se de baldes, enxadas ou troncos de árvore. Mas de repente a luz faltou, ficaram sem água, e então perderam muito terreno para as chamas. No rescaldo, João foi recompensado pelo esforço, porque teve muito pouco prejuízo. No entanto, apenas com este trator não evitou que houvesse duas casas devolutas queimadas, gado, armazéns ou outros tratores dizimados pelas chamas.

A população só serenou pelas dez da noite de segunda-feira, mas apenas respirou realmente de alívio quando caíram as primeiras gotas de água. João, que estava a pé desde as sete da manhã da véspera, parecia que tinha os olhos com areia e sentia-se desgastado pelas horas sucessivas a respirar no meio de tanto fumo. Mas nem por isso caiu a dormir, demorou a conciliar-se com o sono. Pudera: "Aqui, nunca houve um incêndio assim, com esta dimensão tremenda."

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