www.dn.ptJoão Pedro Marques - 22 ago. 01:00

Opinião - Falinhas mansas

Opinião - Falinhas mansas

As pessoas politicamente correctas vigiam (e às vezes corrigem) o que se diz no mundo ocidental. Porém, ao contrário do que tentam fazer-nos crer, a sua hiper-vigilância não é necessária nem nos protege de nenhuma ameaça real. Antes das últimas décadas, isto é, antes do politicamente correcto ter chegado com o seu catálogo de interditos, já havia gente que se expressava sem precisar de correctores do pensamento e da linguagem. Essa gente vivia numa atmosfera mais espontânea e mais verdadeira do que a nossa, sem, por isso, ser necessariamente racista, xenófoba, sexista e todas essas coisas que os fiscais do politicamente correcto gostam de descortinar, com os seus olhos de raios X, atrás de cada porta ou debaixo de cada tapete.

Para que serve, então, tanto controlo e vigilância? Haverá quem pense que não serve para nada, que é tão-só uma herança tardia dos exageros dos anos 60-70, e os factos parecem confirmá-lo. Alguns deles são tão divertidamente insólitos que as pessoas tendem a sorrir e a aderir a modas e procedimentos que lhes parecem inocentes. Mas não são.

Se olharmos com mais atenção, vemos que o politicamente correcto corresponde ao projecto social e político daqueles a que Frederick Crews chamou "ecléticos de esquerda", gente mais ou menos próxima do marxismo e que continua a ter como objectivo a revolução, só que, agora, é de uma revolução cultural que se trata. Essas pessoas acreditam que a língua e as representações moldam e transformam a realidade que se aborda e, portanto, se conseguirem fazer mudar designações, símbolos e imagens, mudarão, a prazo, essa realidade. O seu método "transformador" não conhece, aliás, limites cronológicos e aplicam-no retroactivamente, como no 1984 de Orwell, modificando denominações antigas - numa obra literária, por exemplo - para melhor "ensinar" o presente. Tentam transformar as sociedades a partir de dentro, seguindo a via suave e paulatina da linguagem, da censura e do ensino. É um marxismo reprocessado a procurar chegar lá pé ante pé, e era bom que os cidadãos que encolhem os ombros perante as originalidades do politicamente correcto se apercebessem de que estão perante uma ameaça à liberdade de expressão e não só.

Não acreditam? Olhem para quem, nos Estados Unidos, quer fazer desaparecer as estátuas de Robert E. Lee e de outras figuras ligadas à história do Sul escravista. Com essa decisão abriram a porta aos racistas e neonazis, e à dramática sequência de acontecimentos que conhecemos. Não que não possamos pôr e tirar símbolos da praça pública. Podemos. Mas, de acordo com as sondagens, só 27% da população concorda com a remoção das estátuas. Porém, os politicamente correctos não se prendem com esse "detalhe" e as estátuas já começaram a sair ou a cair em Nova Orleães, Baltimore, Durham. As pessoas que as removem ou abatem têm o mesmo espírito e a mesma conduta dos talibãs afegãos que destruíam as estátuas milenares de Buda, mas, como usam jeans e frequentam as nossas universidades, achamos que não são uma ameaça. Erro nosso. Eles querem mudar a memória colectiva e conduzem um ataque tão feroz nessa direcção que, se fosse hoje, Joan Baez, a musa da esquerda, já não gravaria The Night They Drove Old Dixie Down. Porquê? Porque essa sua canção de 1971 é uma descrição do modo de ver e de sentir da gente do Sul durante a Guerra da Secessão. Aliás, a letra refere com admiração e respeito o general Robert E. Lee (cujas estátuas estão a ser retiradas do espaço público).

O exemplo desta canção, aplaudida durante décadas mas que agora não ressoaria num campus universitário sem levantar protestos, revela bem o que mudou no nosso mundo em termos de fechamento de espírito, de fanatismo, e o abismo para onde, com falinhas mansas, têm vindo passo a passo a empurrar-nos. É, portanto, tempo de acordarmos e de repararmos que o politicamente correcto não é uma coisa divertida nem inócua. É uma mistura de moralismo e radicalismo, com tanto de Rousseau como de Robespierre, e que mandará instalar as correspondentes guilhotinas assim que puder fazê-lo.

Historiador e romancista

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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