www.publico.ptPaulo Rangel - 22 ago. 07:17

Trump e “identidades”: em política, é sempre possível pior

Trump e “identidades”: em política, é sempre possível pior

Trump tem essa visão “identitarista” e gregária e, por isso, é mais moderno – mais “pós-pós-moderno” – do que muitos supõem. É aí que reside o perigo maior.

1. Já há muito que aqui escrevi e torno a escrever: a eleição de Donald Trump foi um desastre político para o mundo em geral e para o Ocidente em particular. O prometido isolamento e fechamento dos Estados Unidos e a desvalorização da Europa e da América Latina eram já sinais evidentes de uma fragilização da aliança entre os países e os povos do mundo livre. Do mundo que preza a primazia da pessoa sobre o Estado e sobre os grupos ou colectivos, os direitos fundamentais, a igualdade e a liberdade, o comércio livre, a propriedade privada, a iniciativa dos cidadãos, a liberdade de criação e de expressão. Algo de especialmente preocupante num tempo em que a China e o seu comunista capitalismo de Estado fazem furor e querem ser exemplo, em que Erdogan e Putin se ufanam de terem grande sucesso, em que a Hungria e a Polónia, em plena União Europeia, dão sinais ambíguos que põem em crise o princípio do primado do direito e o pilar liberal dos regimes democráticos. E algo nada promissor num tempo em que o Reino Unido, aparentemente desorientado, trilha os passos da ruptura com a União Europeia. 

Essa linha isolacionista aparentemente contradita o discurso adoptado em relação à Coreia do Norte e também ao Irão, discurso que, no entanto, vem confirmar as piores expectativas. Não que não seja preciso uma atitude firme, dura e veemente com o regime paranóico de Pyongyang e até alguma vigilância preventiva com Teerão. Mas a retórica infantil, agressiva e gratuita é de uma irresponsabilidade totalmente incompatível com a liderança da maior potência global. Do Presidente dos Estados Unidos espera-se uma gravidade e uma contenção que lhe dêem a credibilidade e seriedade inerentes ao poder de dissuasão de que supostamente é titular.

Para rematar este carrossel de atitudes e posições altamente lesivas da confiança na instituição presidencial norte-americana, sobreveio a reacção aos funestos acontecimentos de Charlottesville. E, mais uma vez, a equivalência entre a violência segregacionista racial da ideologia da supremacia branca – já agora, branca, anglo-saxónica e protestante – e as forças de combate à mesma ultrapassaram as linhas vermelhas do tolerável. Não tenho dúvidas de que, apesar da segregação racial ser um ainda um problema sério nos Estados Unidos (e não só), a situação é hoje infinitamente melhor do que foi no passado. E também não duvido que do lado da luta contra o racismo também possa haver um ou outro foco de violência. Mas a complacência com movimentos assumidamente racistas, que acreditam na desigualdade essencial dos seres humanos, que defendem uma “purificação” da vida política e social, é simplesmente inadmissível e intolerável. Donald Trump, na sua reacção, não podia alimentar qualquer equívoco. E deixou enormes contradições e ambiguidades, que não podem em caso nenhum aceitar-se. Eis o que lança um rasto e um rastilho de dimensões pouco antecipáveis.

2. A complacência com estes movimentos e, em particular, com a sua acção ostensiva e violenta tem o poder próprio das “self-fulfilling prophecies”. Num primeiro momento, a definição que eles fazem da situação social e política não é verdadeira, nem se adequa à realidade. Mas, à medida que as instituições públicas e os grandes mediadores sociais – designadamente, os meios de comunicação social e as redes sociais – lhes dão visibilidade, reconhecem a sua acção, instigam a reacção por meios idênticos, vão lentamente inscrevendo a sua agenda no domínio da realidade e da percepção pública. E pode haver um momento em que uma cadeia de acções e reacções legitime, no terreno prático, a narrativa destes grupos e a sua “heurística” da realidade. A partir daí, uma porção da sua descrição da realidade pode já ser verdadeira ou percepcionada como tal: a espiral dos acontecimentos será então bem mais difícil de conter. O grande risco de muitas das “tiradas” de Trump, ancorado como estava e está numa base eleitoral assaz relevante mesmo que não maioritária, é justamente o de, a dada altura, elas se inscreverem na realidade e na percepção desta. Foi esse o caminho que inaugurou muitas derivas autoritárias, algumas delas antecâmaras do totalitarismo. Não que antecipe um desenvolvimento desses para os Estados Unidos, dada a solidez e a maturidade do seu sistema institucional. Mas há danos que custarão muito a reverter e há um incentivo e uma legitimação de regimes e itinerários autoritários por todo o mundo, cujo preço estaremos já a pagar.

3. Importa perceber que

O remédio contra o “pathos” autoritário é, como tem sido classicamente nas democracias liberais do ocidente, garantir o primado da pessoa sobre o Estado, sobre o grupo, a classe ou até a família. Insisto: o primado (cristão) da pessoa, não a primazia (anglo-saxónica) do indivíduo. Não podemos nem desistir nem conceder nem vacilar. Como há dez anos me confidenciou um dos grandes políticos portugueses: “Rangel, não esqueça: em política é sempre possível pior”.

NÃO. António Costa. Em entrevista, não assume a responsabilidade pelo caos operacional em que mergulhou a protecção civil e não só. E reabilita as grandes obras públicas. Não seria de olhar para o exemplo nórdico ou irlandês?

NÃO. Atentados de Barcelona. A barbárie continua. O Ocidente não pode desistir do seu modo de vida, mas já poucos duvidam de que tem de ser implacável com o fundamentalismo religioso.

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