www.publico.ptAndré Lamas Leite - 21 ago. 10:30

O fim da “prisão aos fins-de-semana” e outras alterações nas penas de substituição

O fim da “prisão aos fins-de-semana” e outras alterações nas penas de substituição

Portugal ainda é uma espécie de “ilha” que, no essencial, vai resistindo ao populismo penal e ao punitive turn.

No passado dia 19 de Julho foi aprovado, pela Assembleia da República (AR), o Decreto n.º 148/XII, o qual, no que aqui importa, introduz alterações relevantes à matéria das penas de substituição, ou seja, aquelas que o tribunal aplica em vez das sanções principais que, em Portugal, são a prisão ou a multa.

Trata-se de um tema que nos é particularmente caro, por a ele termos devotado a nossa dissertação de doutoramento As penas de substituição em perspectiva político-criminal e dogmática. Contributo para uma análise sistemática, concluída em 2015, e na qual avançámos propostas de alteração do Código Penal (CP) que, em vários aspectos, acabarão agora por ver a luz do dia — o decreto foi remetido para promulgação, entrando em vigor 90 dias após a publicação.

Percebe-se, assim, que nos limitemos a assinalar a traço muito groso as novidades para uma melhor compreensão de todos os cidadãos, sem cuidar aqui de alguns aspectos particulares de regime. Em resumo, o legislador pátrio continua a acreditar nas penas de substituição — e bem, quanto a nós —, no que vai sendo quase uma excepção nos países do nosso entorno jurídico-cultural. Portugal é uma espécie de “ilha” que, no essencial, vai resistindo ao populismo penal e ao punitive turn que, nascido nos EUA, tem feito curso em países como a França e a Espanha.

Desde cedo percebemos que a reclusão é deletéria, em especial a de curta duração: em regra, por tantos motivos, a ressocialização do condenado — imposta pela Constituição e pela lei ordinária — não funciona. Assim, só quando é de todo comunitariamente exigível que o condenado recolha ao estabelecimento prisional, sob pena de não se cumprirem as finalidades das reacções criminais, é que a pena de prisão deverá ser aplicada. Mas não sejamos ingénuos: cada dia de reclusão sai caro ao Estado, pelo que a procura de alternativas justifica-se igualmente por motivos económicos. Para se ter uma ideia, por exemplo, o uso da vigilância electrónica custa cerca de 1/3 de um dia de prisão. Claro que o legislador “vende” a ideia com objectivos puramente humanistas, ancorado numa história político-criminal que nos orgulha. Todavia, é também a law and economics a funcionar.

Concretamente no plano das alterações, é de saudar o que muitos de nós já pedíamos há bastante tempo: a revogação da prisão por dias livres e do regime de semidetenção. A primeira consistia numa espécie de “prisão de fim-de-semana” e a segunda convertia o estabelecimento prisional num “domicílio temporário” do condenado, de onde só saía para trabalhar, receber formação profissional ou estudar. A sua ineficácia estava por demais estudada, o que se reflectia na sua pouca aplicação prática. Não só a prevenção geral (protecção da comunidade) se não cumpria, como os condenados não podiam, pelo próprio espaço de tempo que passavam na cadeia, em especial na prisão por dias livres, fazer qualquer trabalho sério de ressocialização. Era, assim, um tempo de nada fazer, muitas vezes de “curar ressacas”. Para além da enorme dificuldade que estes regimes colocavam aos serviços prisionais, pelo trabalho e necessidade de controlo destes “hóspedes”.

A AR alargou — e bem — o regime de permanência na habitação, vulgo “prisão domiciliária”, de um para dois anos, permitindo agora expressamente que ela se aplique também a hipóteses de desconto. Mas a alteração mais saliente — e que também defendemos na nossa dissertação, embora de jeito não totalmente coincidente — é a de minimizar um drama que se vive no nosso sistema prisional: o do não pagamento das penas de multa, em especial em períodos de crise económica. Sabemos que se alguém não paga uma multa ao Estado, depois de várias hipóteses que tem de a liquidar de outro modo, cumpria prisão pelo número de dias de multa reduzida a 2/3. Com o novo regime, se o condenado não liquida a multa, cremos que se aplica a “prisão domiciliária” não apenas na multa de substituição, mas também na multa principal do art. 47.º do CP, dada a redacção ampla do agora art. 43.º, n.º 1, al. c). Mas este é um aspecto que não está claro e que deveria ser esclarecido.

Por outro lado, colmata-se uma lacuna incompreensível, qual fosse a de não estar devidamente regulado quando o condenado se podia ausentar do seu domicílio, estando em obrigação de aí permanecer. Agora fica claro que o pode fazer para frequentar “programas de ressocialização ou actividade profissional, formação profissional ou estudos”, recorrendo-se à “pulseira”. Também se dá a possibilidade de o tribunal introduzir obrigações acrescidas, todas no sentido de que esse período seja orientar para que o condenado, uma vez em liberdade, não reincida.

Igualmente de saudar é a autonomização da pena de substituição da proibição do exercício de profissão, função ou actividade, que se mantém medida até três anos. Menos positivo é, no agora art. 45.º (ex-art. 43.º do CP), não se ter aproveitado para clarificar que qualquer pena de substituição só se pode aplicar se o juízo prognóstico for similar ao que se esperava atingir por via de uma sanção principal. De outro modo, a primeira pena é um mero “arremedo”, um “simulacro de pena”. Outro ponto positivo: depois de fundas críticas da doutrina, a pena suspensa (que infelizmente se mantém para medidas até cinco anos, desde 2007, o que para nós é contraditório com a prevenção geral) já não está indexada à pena principal, ou seja, quem fosse condenado a dois anos e três meses de prisão via a sanção suspensa por idêntico período. Sem qualquer sentido, pois retirava-se aos tribunais a possibilidade de, para concretos criminosos, alargar o tempo de cumprimento até ao máximo, o que retirava flexibilidade a esta medida. Na pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, a única alteração que o legislador se prepara para introduzir é “dizer aos juízes” que esta deve ser uma pena especialmente pensada para os mais jovens. Trata-se de uma menção redundante, dado que esse sempre foi um dos critérios do juízo de prognose para substituir uma pena principal.

Lamentamos que se não tenha aproveitado a oportunidade para acabar com a admoestação para as pessoas singulares, que é uma espécie de “ralhete” dado pelo tribunal aos condenados em multa até 240 dias e que não tem nenhum (ou quase nenhum) efeito prático. De igual modo se impunha alargar o leque de medidas substitutivas da multa, regressando à possibilidade de a pena suspensa se aplicar a ela.

Em suma: medidas em regra no bom sentido, mas ainda não a urgente reforma para credibilizar as penas de substituição e dotá-las do adequado lastro político-criminal e dogmático.

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