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Ela ainda estava a começar, mas já era muito boa

Ela ainda estava a começar, mas já era muito boa

O incêndio na Torre Grenfell, em Londres, causou pelo menos 79 mortos, entre os quais a fotógrafa Khadija Saye, de 24 anos. Um dia antes de as chamas a terem encurralado na casa onde vivia com a mãe, um galerista influente quis conhecer o seu trabalho.

Um dia depois da confirmação da morte da artista Khadija Saye no vigésimo andar da torre Grenfell, consumida pelas chamas no centro de Londres há uma semana e meia, o galerista inglês Andrew Nairne publicou uma fotografia no Instagram que mostra uma papoila vermelha no meio de um vaso cheio de pés de lavanda. Aquela flor tão marcadamente isolada entre outros arbustos (um misto de beleza e estranheza, um pouco como a situação daquela malfadada torre de habitação social no meio de casas mais térreas) fez com que Nairne se lembrasse daqueles que tinham perdido a vida, bem como dos que ainda estão a sofrer depois do incêndio que causou a morte de 79 pessoas, de acordo com o último balanço da polícia. O antigo director do Arts Council England questiona “o que é que esta tragédia revela sobre o país [Inglaterra]” e instiga ainda aqueles que estão no mundo da arte a “fazer mais”, a integrarem comunidades locais, procurando “dar voz àqueles que são marginalizados dentro desta sociedade desigual” em que vivemos.

Um dia antes da morte de Khadija Saye, Andrew Nairne — uma voz influente no mundo da arte e actual director da prestigiada Kettle’s Yard, a galeria de arte moderna e contemporânea da Universidade de Cambridge — encontrou-se com esta fotógrafa em início de carreira, depois de ter ficado fascinado com o seu pequeno conjunto de imagens apresentado este ano no Pavilhão da Diáspora na Bienal de Veneza, naquela que é a primeira exposição internacional da artista de ascendência gambiana. Conta o jornal The Guardian que Nairne pediu a Saye que o encontro fosse no seu estúdio, desconhecendo que a fotógrafa não tinha um espaço próprio permanente para trabalhar, a não ser o pequeno apartamento que dividia com a mãe, Mary Mendy, que também morreu no incêndio.

Não se sabe se Nairne subiu até ao vigésimo andar da torre Grenfell para ver mais fotografias de Saye (ele queria discutir os próximos passos a dar, talvez para começar a representar a sua obra), mas parece certo que a casa da artista era um reduto privilegiado de cada vez que não havia dinheiro suficiente para pagar rendas em outros espaços para trabalhar. 

PÚBLICO - Foto Khadija vivia com a mãe no 20.º andar da Torre Grenfell. O apartamento servia-lhe também de estúdio WILL OLIVER/reuters

No dia 5 de Março deste ano, Khadija Saye, de 24 anos, publicou dois tweets que demonstram o quanto evoluiu a sua carreira em quatro anos e como conseguia fazer muito com pouco, desde que tivesse uma casa e amigos dispostos a ajudar. A primeira mensagem mostra uma fotografia captada há quatro anos, onde aparece um estúdio improvisado dentro do apartamento da torre Grenfell durante a criação da série Crowned (trabalho de fim de curso da University of Creative Arts — UCA muito elogiado por professores, feito com “zero libras, um pedaço de veludo preto e família e amigos lindos”). A segunda mostra o processo de revelação dos tinótipos (processo de impressão do século XIX) que levaria à Bienal de Veneza (a exposição colectiva onde Saye mostra esta série e que pode ser vista até ao dia 26 de Novembro).

A artista iraniana Sanaz Movahedi escreveu um depoimento para o jornal The Observer onde elogia a alegria de viver de Khadija Saye e relembra algumas das coisas que tinham em comum: “Crescemos ambas em casas muito pequenas com mães de personalidade forte. Brincávamos lembrando como, enquanto crianças, tínhamos vergonha de convidar amigos, não tanto por causa do tamanho das casas mas porque estavam tão atafulhadas de objectos estranhos que eles iriam começar a olhar de soslaio. No entanto, as nossas mães também nos ensinaram a ter orgulho das nossas origens e diferenças.” A presença (e influência) da figura da mãe no trabalho de Saye revela-se num tweet por altura em que a artista preparava a exposição na Bienal: “Tem sido uma imensa caminhada, mas mãe, sou uma artista que expõe em Veneza e os elogios são abundantes!”

PÚBLICO - "Dwelling: In this space we breathe", a série de trabalhos de Khadija Sayee que está no Pavilhão da Diáspora, na Bienal de Veneza "Dwelling: In this space we breathe", a série de trabalhos de Khadija Sayee que está no Pavilhão da Diáspora, na Bienal de Veneza Fotogaleria Piedade, virtude e alma num retrato

A maioria dos trabalhos conhecidos de Khadija Saye, erguidos sobretudo a partir do retrato, incorporam de alguma maneira o legado cultural do país de origem dos seus pais, a Gâmbia. A série apresentada em Veneza (Dwelling: In this space we breathe, um título que hoje ressoa cheio de ironia trágica) explora a espiritualidade de rituais gambianos (que a mãe de Saye praticava) que transcendem a especificidade de uma religião ou de um lugar. Tomando como inspiração o desenvolvimento da pintura retratista do século XV, a ambição de Saye com esta série era a de perceber “como é que um retrato fotográfico pode funcionar como revelador da piedade, da virtude, da alma e da prosperidade de cada um”. Foi essa mistura de símbolos religiosos e de práticas ritualistas em auto-retratos “calmos”, “firmes” e “carregados de magia” que deslumbraram muitos dos que já os viram em Veneza ou na conta de Instagram da Metro Imaging, um laboratório de imagem londrino que ajudou Saye a produzir esta série.

Os elogios começaram a aparecer mesmo antes de a sua morte ser anunciada por David Lammy, deputado trabalhista que era amigo da fotógrafa e uma das vozes mais críticas sobre a qualidade das habitações dos bairros sociais e o rumo da investigação ao inc��ndio. “É extraordinário que ela tenha criado séries tão notáveis, poderosas e originais. O que aconteceu é uma tragédia — [Dwelling:…] é um corpo de trabalho muito firme, mas haveria muito mais por vir. Ela tinha um futuro esplêndido à sua frente”, disse ao The Guardian Andrew Nairne, que fez um curto comentário sobre o seu encontro com Saye na sua conta de Instagram, dizendo apenas que ela foi “amável” e que o trabalho que viu um dia antes da sua morte era “cintilante”. “Falámos muito da mãe, que era a sua maior inspiração.”

Não conhecia ninguém no mundo da arte, não vinha do mundo da arte, mas tinha uma noção muito clara sobre o seu trabalho e sobre o seu desejo de criar”

Nicola Green, artista

Na resenha crítica que fez para o The Sunday Times, Waldemar Januszczak enalteceu os “deslumbrantes” tinótipos de colódio húmido que trazem “poesia” e “melancolia” à imagética de Saye. Para Caroline Douglas, directora da Contemporary Art Society, as fotografias da série Dwelling são “maravilhosamente estranhas” e têm “uma carga emocial pesada”. Depois de saber da morte de Saye, Januszczak desafiou Maria Balshaw, directora da Tate, a homenagear o seu trabalho. Num tweet acompanhado de uma fotografia, Januszczak escreveu: “Maria, este é o trabalho de Khadija Saye. Ela estava apenas a começar, mas já era muito boa. [o seu trabalho] Merece ser comemorado.” E a Tate respondeu de imediato colocando uma das suas fotografias (Sothiou, 2017) na galeria que serve para homenagear o trabalho de artistas britânicos que já morreram.

A ideia que fica é que Khadija Saye desapareceu no exacto momento em que a sua obra começava a despontar e a chamar a atenção do mundo da arte. “Nas últimas semanas ela foi convidada a fazer exposições em todo o tipo de galerias prestigiadas. Os seus sonhos começavam a manifestar-se de uma maneira emocionante”, revela ao Guardian Nicola Green, artista casada com Lammy, que desde que descobriu Saye num concurso em que foi jurada, em 2014, não deixou de promover o seu trabalho. Ray Fiasco, um dos artistas que expuseram com Saye em Veneza, diz que o trabalho da fotógrafa teve aí “uma recepção enorme”. “Se foi assim que ela começou, quem sabe onde poderia ir parar?”

PÚBLICO - Foto Na Tate, memorial na galeria que serve para homenagear o trabalho de artistas britânicos que já morreram cortesia tate britain “Ela colou”

O curador David A. Bailey, responsável pela escolha dos 12 artistas do Pavilhão da Diáspora, reitera o impacto positivo causado pelo trabalho de Saye: “Ela colou, esta é a melhor maneira de descrever o que se passou.” Um antigo professor na UCA não tem dúvidas de que, caso a morte trágica de Khadija não tivesse acontecido, “as exposições individuais em galerias e museus não estariam muito longe”. “Ela tinha um talento muito especial que nos foi roubado muito cedo.”

Nicola Green diz ao The Guardian que Khadija Saye “não conhecia ninguém no mundo da arte, não vinha do mundo da arte, mas tinha uma noção muito clara sobre o seu trabalho e sobre o seu desejo de criar”. Este empenhamento e esta força de vontade de estar na arte são algumas das tónicas dos inúmeros depoimentos vertidos para a imprensa inglesa na última semana, onde não faltam também elogios à sua “bondade”, “alma espirituosa”, “modéstia” ou ao seu “sorriso contagiante”.

A BBC tinha agendado para o dia 17 de Junho um documentário sobre os vários artistas que passaram pelo Pavilhão da Diáspora, mas decidiu adiá-lo depois de se saber da morte de Saye. 

Na noite de 13 para 14 de Junho, Khadija Saye estava em casa com a mãe, no vigésimo andar da Torre Grenfell. Depois de se ter apercebido da dimensão do incêndio, começou a mandar mensagens de Facebook para os seus amigos, revelando que não conseguiria escapar por causa do fogo e do fumo espesso e pediu que rezassem por ela e pela mãe.

A casa que lhe serviu de espaço de liberdade criativa acabaria por ser o espaço que tragicamente a encurralou na morte.

Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de Domingo do PÚBLICO

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