www.publico.ptpublico.pt - 25 jun. 10:00

Quem lá foi não esquece. Quem lá vive não tem o poder de não se lembrar

Quem lá foi não esquece. Quem lá vive não tem o poder de não se lembrar

Quem estava aflito não conseguia pedir ajuda; quem podia ajudar não conseguia saber ou sabendo não conseguiu lá chegar a tempo. Sábado foi o dia da morte, domingo o dia do medo, segunda a chuva deu esperança, mas era a dor que imperava quando as nuvens de fumo se dissipavam, terça foi o dia do início desta outra vida para os que ficaram, seja ela qual for, e quarta o dia do início da reconstrução. E todos os dias foram dias de evacuações, menos o primeiro, quando as pessoas não saíram a tempo.

Quem estava aflito não conseguia pedir ajuda; quem podia ajudar não conseguia saber ou sabendo não conseguiu lá chegar a tempo. Sábado foi o dia da morte, domingo o dia do medo, segunda a chuva deu esperança, mas era a dor que imperava quando as nuvens de fumo se dissipavam, terça foi o dia do início desta outra vida para os que ficaram, seja ela qual for, e quarta o dia do início da reconstrução. E todos os dias foram dias de evacuações, menos o primeiro, quando as pessoas não saíram a tempo.

Foram dicotomias as que se viveram nestes dias. De um lado os que se queixavam por não terem sido socorridos, de outro lado os que socorrem arcarem com a dor de ouvir as queixas dos que perderam alguém. Falharam as comunicações, isso é certo. Mas porquê? Como? Quando? Durante quanto tempo? Que consequências? Todos fazem estas perguntas e querem procurar culpados (não se encontrou quem acredite que não foi fogo posto) e responsáveis (querem saber porque não foram socorridos a tempo).

Ana conta que ligava para os bombeiros e não conseguia. Na descrição que faz parece que ainda está aflita a carregar nas teclas do telefone. Foi com alguns familiares e amigos para perto de um tanque e lá se salvaram algumas vidas. Das 30 pessoas da aldeia do Nodeirinho, onde vive, morreram 11. “Estivemos a ligar desde as 8 até às 3 da manhã. Ninguém apareceu. Morreu o meu marido. Um pinheiro caiu… estava a 200 metros de casa. Tinha ido ver se o fogo estava muito perto”, conta.

Ana salvou-se, mas morreu Sidnel e o sobrinho. Mas o que ainda doía a Ana naquele domingo à entrada da Santa Casa de Pedrógão Grande foi o tempo que teve de esperar para que a Polícia Judiciária fosse até lá recolher os corpos: “Escreva aí que o meu marido esteve até hoje de manhã na estrada queimado”.

Adelaide Silva, umas casas acima, sobreviveu fechada em casa com mais nove pessoas, entre elas três crianças. “Parecia um tornado por aí adiante, que levava tudo. Encostei a mão a estes vidros e ferviam. Era o inferno autêntico”. Viu as casas dos vizinhos a arder e a morte à porta. Tratou uma vizinha, mas não foi suficiente para a salvar das queimaduras graves. Conta a história graças a toalhas molhadas e aos vidros duplos. “Os que morreram foram os que fugiram”.

As vítimas culpam quem as deixou à sua sorte, sem poderem nem conseguirem racionalizar o que aconteceu, os bombeiros sentem-se impotentes por não terem conseguido dar resposta às dezenas de telefonemas de pedidos de ajuda de quem estava no meio de eucaliptos, que mais não são que fósforos gigantes plantados até ao alcatrão. Não tinham como apagá-los. Talvez por isso os bombeiros prefiram não falar.

À porta do Centro de Saúde de Pedrógão Grande, naquele domingo ainda de medo, meia dúzia de técnicos do INEM preferiam não falar. Estavam sentados no chão, exaustos, falavam entre eles e calavam-se. Os jornalistas eram convidados a ir embora pelo silêncio. No largo, havia homens e mulheres a descansar junto à meia dúzia de ambulâncias ou deitados em muros. Bombeiros e carros estavam parados à espera que lhes ligassem para ir socorrer alguém. Preferiram não falar. Com o acalmar do fogo, a cabeça começou a descansar e nos buracos do descanso começaram as primeiras perguntas: “Acha que as pessoas nos culpam?”, perguntava um bombeiro exausto, em Figueiró dos Vinhos, derreado por se sentir “impotente”.

Os factos ainda estarão para apurar nos próximos dias, mas por estes concelhos fala-se em desorganização do combate inicial: “O fogo queimou tudo o que quis”, desabafa um bombeiro. José Domingues, comandante dos bombeiros de Castanheira, é mais cauteloso. “Não havia probabilidade de eficácia, porque o fenómeno da velocidade e da propagação foi fora do normal. Foi demasiado rápido. Depois era colocar um carro aqui outro ali na protecção de bens e das famílias e retirou a possibilidade de fazer um ataque directo ao fogo. Não havia a possibilidade dada a quantidade de focos. O concelho foi tomado em pouco mais de 15/20 minutos”.

Em quarenta anos de trabalho nos bombeiros nunca tinha visto “nada assim”. O fogo foi mais rápido a galgar que os carros a acelerar. José Domingues conta que passou na EN236-1 dez minutos antes da desgraça e que viu o fogo ainda a uns 800 metros, nada lhe fazia prever que também a estrada ia ser tomada.

O corpo de voluntários que comanda é composto por 60 bombeiros e seis carros, dois tinham ido para Pedrógão e um para Figueiró dos Vinhos. Quando o vento muda, deslocalizaram o carro de Figueiró (dois concelhos a Sul) que segue pela EN236-1 e lá fica. A vila tem apenas duas vias principais de acesso e depois disto ficou ainda mais difícil de lá chegar.

“Os nossos bombeiros estavam a combater o incêndio em Pedrógão Grande, o incêndio evoluiu tão rápido que os nossos bombeiros ficaram lá e ficámos aqui desprotegidos. Não tínhamos cá bombeiros. Primeiro que se organizassem e cá chegassem, o incêndio chegou às portas de Castanheira de Pêra. Estivemos dois dias quase abandonados”, conta Baltazar Lopes, presidente da Associação de Bombeiros de Castanheira de Pêra.

Poucos são os que conseguem dar uma ideia exacta do tempo. Das horas a que tudo aconteceu e do tempo que duraram. A linha do tempo é difícil de reconstruir, ainda não era tempo de preencher os buracos da memória apagados durante os largos minutos em que tentaram sobreviver.

daniel rocha Segunda-feira

O fogo andava em parte incerta, mas a pouca chuva da manhã tinha dado esperança que já não fizesse mais estragos. Desde domingo à noite que o objectivo da Protecção Civil, mais do que o combate ao fogo, era o de evacuar aldeias em risco. Onde? Raras eram as informações dadas. Sabia-se que o fogo de Pedrógão ainda tinha quatro frentes activas, que andava algures entre Figueiró e a Sertã, e que o incêndio de Góis, com seis frentes, inspirava muita preocupação.

“Eu disse-lhes que não queria sair de casa. Que a minha casa era no centro da aldeia, mas os bombeiros disseram-me logo que tinha de sair por causa da inalação do fumo”, diz Arminda, uma das pessoas que foram evacuadas da aldeia da Derreada logo no domingo à noite. Nestes dias, foram mais de 40 aldeias evacuadas nos concelhos de Pedrógão, Castanheira, Sertã, Figueiró, Pampilhosa da Serra, Góis e Ansião.

Nesta segunda-feira a aldeia está quase deserta. Está um cão amarrado a uma corrente. Tem comida e tem água. O fogo passou-lhe a uns cinco metros, mas não entrou. Quando a GNR chegou à povoação de Porto dos Fusos, na Sertã, no domingo à noite, já tudo à volta tinha ardido. Mesmo assim, a aldeia foi evacuada. Irene Matias insistiu e ficou em casa com alguns vizinhos. Conta a sua noite à beira da fonte de água da aldeia, salvou algumas couves e uma ou outra árvore de fruto, mas não sabe como vai viver só com os 165 euros da pensão de viuvez. Um dos problemas desta zona é que a agricultura era de subsistência e agora os solos ficaram queimados.

“Agora compro o quê? Carvão?”, esta era a pergunta que se fazia Joaquim Almeida. Não fora a desgraça maior que teve por perder membros da família no fogo e esta já seria uma desgraça demasiado grande. Os vizinhos perderam cabras e ovelhas e este agricultor perdeu a fertilidade das terras que tinha acabado de comprar e as colmeias, na aldeia da Graça. Este vai ser o desafio dos próximos tempos para estas pessoas. Têm de esperar pela rotação das estações e é a pior, o Verão, que se aproxima. Não haverá verde que dali brote, que produza alimentos para as pessoas e para o gado.

Terça-feira

Castanheira de Pêra foi duro. “Por que é que só agora apareceram aqui?”. Não é que a presença de jornalistas valesse de grande coisa para o combate às chamas, mas a não presença de comunicação social acicatava o sentimento de abandono. Só dias depois de tudo ter acontecido foi possível chegar em segurança à pequena vila. Durante 48 horas estiveram sem comunicações, muitas vezes sem electricidade, com estradas cortadas de forma intermitente, sem saberem ainda bem o que tinha acontecido aos seus. E ali todos são “seus”. Todos se conhecem.

Era não só uma terra que sentia que todos lhe tinham virado as costas no momento de aflição, como uma terra que, diligente e doída, organizava os primeiros funerais. E foram tantos. Foram demasiados. Maria, funcionária da Santa Casa, andou com as colegas de casa em casa a ver como estavam os utentes que ajudam. “Fui fazer a ronda para ver se era preciso salvar alguém. Encontrei três mortos em casa”, diz. Naquela terça-feira enterravam quatro amigos, de Sarzedas de São Pedro, no dia seguinte seria a vez de Gonçalo Conceição, o bombeiro que morreu no hospital depois de ter ficado tempo de mais na EN 236-1 a tentar salvar as vítimas do carro que tinha chocado contra si e os seus companheiros. “O meu tio disse para levarem primeiro os colegas, porque os colegas estavam pior do que ele, ele dizia que estava bem dentro das condições”, conta Ana Morgado. 

Ana Morgado era o rosto da indignação e da revolta, naquela terça-feira de aparente acalmia em Castanheira. Mas chegou o meio do dia e o vento mudou. Tudo se agrava quando o vento muda. E o fogo, que já estava controlado na parte sul do concelho, chegava agora do Norte, por onde o incêndio de Góis fazia caminho desde Domingo. Castanheira de Pêra foi um concelho entalado entre os dois incêndios (o de Pedrógão Grande e o de Góis), e é agora uma terra arrasada a negro, a pedir ajuda para “renascer das cinzas”, como dizia o presidente da Câmara, Fernando Lopes.

paulo pimenta Quarta-feira

O incêndio ainda por controlar lavrava em Góis à beira da Pampilhosa da Serra. António Cortês e Rosa, os únicos habitantes de Vale Carvalho, foram evacuados na terça à tarde e ainda esperavam que a GNR os deixasse voltar a casa. Estavam preocupados com as galinhas e com o que cultivam. “Fartei-me de trabalhar, temos muita coisa, muita fruta”, conta António. Este casal de emigrantes voltou para Portugal há largos anos e ali ficou numa terra embutida na serra. Viram desaparecer os vizinhos e ficaram sozinhos na pequena povoação. Sozinhos, não. Têm o Gentil, um arraçado de labrador de pêlo branco tisnado que foi evacuado com eles. Só regressariam a casa no fim desse dia, quando o Protecção Civil começou a informar que também o incêndio de Góis estava perto do fim.

Foi o último dia de maior perigo. À volta das estradas o cenário é negro com paus espetados ainda de pé. A EN236-1, onde morreram mais de 40 pessoas, começa a ser reparada. No IC8 substituem-se os rails que foram derretidos pelo fogo e cortam-se as árvores queimadas para que não caiam com o vento. E tudo começou naquele sábado à tarde. Era já de noite quando se soube que não era só mais um incêndio. Era um fogo assassino que já tinha tirado a vida a 19 pessoas. Porquê?

O único caminho a seguir era o de Pedrógão Grande. Mas nenhum caminho ia dar a Pedrógão, as estradas cortadas e o fumo negro ao longe, mas perto, faziam prever que o monstro era tão grande que nunca tinha sido visto nada igual. Quem lá foi ver para contar ou para ajudar não vai esquecer. Mas esse é um fardo tão pequeno quando comparado com o desafio que têm aqueles que viveram o inferno por dentro. Quantos dos mais novos vão aguentar e não fugir? Como vão atrair o turismo que crescia e atraía gente de outros lados? Os que lá ficam, são heróis e viverão sempre com a dor de não terem o poder de apagar da memória aquelas horas que mudaram o curso das suas vidas. Serão sempre obrigados a lembrar-se.

Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de Domingo do PÚBLICO

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