www.cmjornal.ptVictor Bandarra - 25 jun. 01:30

Se ainda zumbirem abelhas...

Se ainda zumbirem abelhas...

Portugal arrisca-se a que, em poucos anos, o mel comece a saber a sangue.

Na aldeia de Fujaco, envolvidos por um silêncio de morte, é o zumbido insistente das abelhas que mais azucrina a cabeça ao casal Soares."Foi tudo à vida! As bichinhas andam meio tontas!" José, cabisbaixo, aponta as abelhas desorientadas. Não há uma única flor, um único fruto. A aldeia está rodeada de cinzas e fumo.

José e Glória, dos poucos agricultores activos, choram ovelhas mortas, laranjeiras queimadas, oliveiras esturricadas. Já nem ligam aos pinheiros e eucaliptos que se foram. Os 30 e poucos habitantes da aldeia (quase todos velhos, quase todos lúcidos) recusaram fugir. Escaparam à morte por um triz, encostados às paredes de xisto. Noutros tempos, haviam de dar luta ao fogo. Fujaco, S. Pedro do Sul, foi célebre por uma semana. O grande fogo juntou bombeiros, polícias, autarcas, jornalistas, e todos fizeram com que fosse mostrada em todas as televisões. Pelo último Natal, a consoada de bacalhau com batatas e couves foi comida em silêncio e solidão pelas gentes de Fujaco, regressadas ao esquecimento de todos. Contou o ‘Notícias de Viseu’ que, à volta e à vista, muitos tocos de árvores mortas ali continuavam a fazer lastro para futuros fogos.

Há dias, em Pobrais, Pedrógão Grande, morreram 11 pessoas, queimadas e intoxicadas, metade da população. Os bombeiros não chegaram lá. Na estrada e em outras aldeias meio desertas, as labaredas à solta devoraram mais umas dezenas. Nas televisões, viu-se o povo chorar os seus mortos e as suas desgraças. Como todos os anos pelo Verão, especialistas e bombeiros, políticos e autarcas, fizeram diagnósticos e prognósticos. Muitos deles à moda dos soldados de La Palice - reordenar a floresta, blá-blá, a prevenção, a protecção civil, blá-blá, equipar os bombeiros, comprar aviões... Em ano de autárquicas, é de bom tom que não haja culpados. Aliás, não consta que tenha havido grandes penalizações por ausência de limpeza da floresta, ou que o célebre e oneroso Cadastro Florestal tenha levado o devido alento de governantes e afins. A maioria das pequenas parcelas de floresta do Norte e Centro foi herdada por gente que vive no Grande Porto, Grande Lisboa ou no estrangeiro. Porque aquilo não rende nada, é natural que não saibam, nem queiram saber, onde ficam exactamente as terras. E de nada vale o alerta do Prof. Xavier Viegas: é preciso preparar os poucos habitantes no terreno para o combate ao fogo. Como? Se nem uma boca de incêndio existe nas aldeias?!

Fujaco (lembram-se?) esteve rodeada de chamas há menos de um ano. O sr. Soares, amargurado, queixava-se então de que o mel, este ano, havia de saber a cinzas. Com a memória em estado deplorável, Portugal arrisca-se a que, em poucos anos, o mel comece a saber a sangue! Se ainda zumbirem abelhas...

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