blitz.sapo.ptblitz.sapo.pt - 25 jun. 09:00

Rodrigo Amarante: enfim livre

Rodrigo Amarante: enfim livre

No Brasil, foi uma das figuras de proa dos populares Los Hermanos. Na Califórnia, inventou uma nova vida para si, trabalhando com Devendra Banhart e músicos dos Strokes. Este verão regressa para um concerto no festival Mimo, em Amarante: recorde a entrevista de junho de 2014

Quem é Rodrigo Amarante? Cavalo, o primeiro disco a solo do ex-Los Hermanos e membro de variados outros projetos, parece responder a esta pergunta com cautela, sem precipitações ou certezas e valorizando sempre o processo de procura interior. Ao telefone de Joshua Tree, na Califórnia, onde fora passar a noite, o carioca que há vários anos vive em Los Angeles fala-nos da semana «incrível» que passou, recentemente, no Porto; da razão pela qual se sente melhor agora do que quando era mais jovem e do verdadeiro significado do título Cavalo.

Vive em Los Angeles há vários anos e trabalha com regularidade com músicos norte-americanos. Mas continua a considerar-se estrangeiro...
Sempre, sempre. Isso não muda. Eu sou estrangeiro: a minha língua é outra e, por mais que eu vá mudando um pouco a cada lugar que vou, por mais que me vá adaptando e ganhando uma perspetiva nova, isso é uma coisa que me vai acompanhar sempre.

O seu disco chegou a Portugal depois de já ter sido editado em França e no Brasil. As reações são diferentes consoante o país?
(Risos) Eu até brinco, digo que estou lançando o mesmo disco há dez meses! Mas em cada lugar há uma reação diferente: as músicas preferidas são diferentes, os singles também. Há sítios onde preferem o lado A, outros em que preferem o lado B. Eu tomo isso como um elogio e acho incrível.

O título do álbum, Cavalo, tem a ver com o médium que, nos cultos afro-brasileiros, estabelece o contacto com os espíritos. Mas é uma palavra que tem, também, uma conotação escapista, de liberdade...
Na verdade, a ideia é que o cavalo é um veículo entre uma coisa e outra. Essa leitura do candomblé serviu-me: percebi que cabia perfeitamente [nesse conceito]. Mas a ideia é que, por estar separado [do meu país], por sentir-me isolado e isso foi mais ou menos uma escolha, pela falta de um interlocutor com quem me possa expressar e desenvolver as minhas ideias, acabei por criar e desenvolver um duplo. Percebi a presença de duas forças em mim: uma menos racional, mais criativa e passional, que é o amor pelo processo, a pulsão criativa sem qualquer compromisso com a concretização de alguma coisa. A outra é uma pulsão mais racional, de concretizar, desenvolver, desdobrar cada centelha de ideia. Então parece que são dois: um que traz a matéria e outro que trabalha a matéria. Pareceu-me como se fossem o cavalo e o cavaleiro. E a imagem serve porque, de uma certa forma, o cavaleiro guia o cavalo e, às vezes, o cavalo guia o cavaleiro. E as pessoas que andam a cavalo, que têm essa paixão, falam muito de uma simbiose que começa a acontecer entre o cavalo e o cavaleiro. A cavalgada perfeita é aquela em que não se usa as regras, onde cavalo e cavaleiro parecem dividir uma espécie de espaço mental. Então, essa tornou-se uma utopia de escrita para mim: uma fusão do cavalo e do cavaleiro, uma fusão da pulsão passional com a intenção racional de concretizar a obra. Começar a sentir menos essa separação. Eu digo utopia porque sei que vou buscá-la pelo resto da vida, mas a perceção desse duplo, dessas duas forças, já me ajuda.

E esse conceito foi fácil de alcançar?
Não veio rápido, mas também não foi difícil, porque é uma grande alegria, essa busca! Quando me sentei para escrever e resolvi fazer um disco sozinho, não sabia ainda o que queria escrever. De uma forma natural, acabei por escrever sobre a própria intenção de escrever. Então, parte do disco tornou-se um retrato dessa busca. Escrevi sobre essa bênção digo bênção porque foi uma oportunidade de recomeçar, de ir para um lugar novo, onde as pessoas não me conheciam, e poder botar a minha música e os meus versos à prova. Escrever na língua do outro, escrever uma nova forma de escrever porque, numa nova língua, usamos as imitações como campo fértil para a criatividade. Por exemplo, «Nada em Vão», que é a música que abre o disco, foi talvez a última que escrevi, e fala sobre o que escrevi antes. É uma canção que fala sobre o espaço, sobre a distância, sobre o tudo que há onde não há nada, o não dito. Quantas palavras há num olhar? Quantas possibilidades existem nesse espaço entre uma coisa e outra? O disco, do meu ponto de vista, fala sobre isso: a memória como uma coisa viva, inventada, sobre a soltura que temos quando nos isolamos, quando abandonamos todos os símbolos que carregamos, para nos lembramos de quem somos e de quem inventamos. A personagem que inventamos ser. Quis colocar tudo isso à prova para descobrir o que ia aparecer, num processo de transformação, como todas as viagens.
Quando viajamos e vamos para um lugar novo, tempos sempre esse espírito à nossa volta, essa estranha possibilidade de um outro tempo. Sinto que vivo, neste momento, um presente paralelo ao presente que estaria vivendo se não tivesse feito esta viagem. Este duplo vem daí, dessa possibilidade.

Mas o que sobra de nós, depois de abandonarmos todas as máscaras e personagens que vamos progressivamente adotando?
As camadas que a gente cria, os símbolos que a gente escolhe e dos quais nos rodeamos para nos assegurarmos que somos nós: não acho que isso seja uma mentira e que, por detrás disso, haja uma verdade. Mas podemos livrar-nos dessas máscaras. O exercício de puxar e arrancar a máscara é muito importante, por ser capaz de nos colocar em contacto com memórias ainda mais antigas mais próximas da pureza da infância, talvez. Mas também não faço apologia da inocência, que tem muita beleza, e é por isso que as crianças são tão inteligentes e sinceras... mas há algo de tão lindo na experiência! De uma certa forma, é preciso experiência para fazer o sofrimento de arrancar a máscara, de perceber o que o tempo tem feito às nossas expectativas e sonhos. Quanto mais o tempo passa, melhor as coisas ficam para mim, não no sentido físico, mas do espírito. Sinto-me mais calmo, tenho menos pressa, menos desespero coisas que a juventude tem.
A infância, tal como a velhice, penso que é um período de ouro. Tentar encostar nos dois, nessa utopia de entender de onde eu vim e como sou, é interessante.

Rodrigo Amarante regressa este verão a Portugal, para atuar no Festival Mimo

Rodrigo Amarante regressa este verão a Portugal, para atuar no Festival Mimo


Mudou-se para os Estados Unidos depois do fim dos Los Hermanos, que tinham um grande sucesso no Brasil. Quis fugir a essa fama?
Não diria fugir, porque [estar nos Los Hermanos] sempre foi uma coisa maravilhosa, mas abandonar esse contexto. Fiquei interessado em começar de novo e escrever para pessoas que nunca ouviram a minha música, oportunidade que dificilmente teria no Brasil. Eu sintome com muita sorte, tão rico como um rei: sinto que tenho um compromisso de buscar alguma coisa que sirva, de facto, às outras pessoas. A minha vontade final é apenas fazer parte. Mas, para fazer isso da forma mais intensa, mais pura, mais desafiadora, senti que deveria [sair do Brasil]. Não foi uma coisa que inventei: eu vivo prestando atenção às sugestões do acaso, porque sinto que os meus desejos e pensamentos são produtores do meu próprio destino. Acredito que aquilo que a gente deseja nos nossos pensamentos, às vezes mais do que nas nossas palavras é mesmo capaz de formar o nosso destino, ou seja, as oportunidades e coisas que acontecem.

Esteve no Porto [em 2014] a fazer filmagens e deu um concerto-surpresa no Passos Manuel. Como correu essa semana?
O plano inicial era filmar um vídeo com o meu amigo André Tentugal, mas ele disse: «você devia fazer um show». Só que, por causa do [contrato com o] festival em junho, eu não podia fazer um concerto convencional, então eles [sugeriram]: «e se fosse só boca a boca, sem usar o Facebook ou qualquer anúncio?». Nessa semana, tudo se multiplicou: as ideias, os vídeos... e o show foi muito especial para mim porque, pelo facto de ter sido feito dessa forma, coisa muito rara hoje em dia, eu sabia que ali estavam apenas os amigos ou os amigos dos amigos dos amigos... Todas as pessoas naquela sala tinham entre si alguma conexão, mesmo que não se conhecessem. A energia do show, da sala, o Becas [responsável pelo Passos Manuel], que conheci e se tornou meu amigo...

O seu antigo companheiro de banda, Marcelo Camelo, vive em Lisboa, o Rodrigo ficou encantado pelo Porto...
Quando nós [Los Hermanos] íamos a Portugal, dizíamos sempre: «o próximo disco temos de fazer aqui!». É engraçado, porque o Marcelo escolheu Lisboa e eu digo que o Porto me escolheu. Tenho amigos maravilhosos em Lisboa, mas o Porto meio que me cativou... alguma coisa aconteceu! (risos) É mais sombrio, mas parece mais calmo. O Porto parece que não precisa de revelar os seus segredos.

A sua música sugere uma paixão por vários géneros: o que ouvia em criança?
O samba foi a música que cresci ouvindo. Mas os meus pais sempre gostaram de rock e, em casa, havia essa mistura entre Caetano Veloso e Beatles, entre Chico Buarque e Rolling Stones. Ainda criança, a minha irmã começou a ouvir música punk antes de mim, embora seja mais nova que eu, um ano e um pouquinho. Então, comecei a ouvir rock e punk ainda em criança, e adorei. Tinha começado a tocar bossa nova no violão, mas aos 11 ou 12 anos pedi uma guitarra elétrica e um pedal de distorção para tocar rock. Na infância as minhas influências foram os Beatles, por causa dos meus pais, o samba como enredo e os Smiths e The Cure por conta própria. A música ocidental, por assim dizer americana e inglesa, elétrica sempre esteve presente na minha casa, tal como a música tribal e o batuque. Essas duas correntes sempre se misturaram com muita naturalidade quando eu era pequeno; acho que tudo se desdobrou daí o meu amor pela música nigeriana e de África vem desse umbral que é a música brasileira mais tribal. A sofisticação dos arranjos não vem da música clássica, mas talvez dos arranjos mais rebuscados dos Beatles.

ENTREVISTA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA BLITZ Nº 96, DE JUNHO DE 2014

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