www.dn.ptJoão César das Neves - 24 jun. 01:00

Não Há Almoços Grátis - A farsa de Marx

Não Há Almoços Grátis - A farsa de Marx

Constitui um mistério que um partido [o PCP] que tanto fala dos trabalhadores queira sair do euro. Os maiores prejudicados por esse movimento seriam os assalariados

Marx ensinou que a história repete-se, "primeiro como tragédia, depois como farsa" (O 18 de Brumário, de Luís Bonaparte, 1852, cap. 1). O recente regresso do extremismo político ao Ocidente manifesta a sabedoria do aforisma.
O avanço das franjas políticas é evidente, seja através de novas entidades - Podemos, UKIP ou Syriza- seja pelo desequilibrar de partidos clássicos - PSOE, Republicanos ou Labour. Mas esta reincarnação acontece com um paradoxo, gerando a citada farsa: embora o vigor, a retórica e as doutrinas retomem a dinâmica radical de há cem anos, falta-lhe a credibilidade ideológica dos bisavós.
Hoje é difícil acreditar na sedução das teses, dos modelos e das propostas dos jovens Lenine, Mussolini, Hitler ou Mao. Como vemos a história ao contrário, os escombros, morticínios e campos de concentração tapam-nos o magnetismo que arrastou multidões atrás desses líderes. Passados cem anos, os novos dirigentes - de Trump e Le Pen a Orbán ou Grillo - copiam os métodos e aspiram ao triunfo dos antepassados, mas não conseguem repetir os ensinamentos que eles cavalgaram, irremediavelmente ultrapassados pela história. Vivemos a contradição de extremismo sem fundamento doutrinal.
As teses de raça superior e destino nacionalista são aberrantes aos ouvidos da geração Facebook, como soam ridículas a revolução operária, sociedade sem classe ou ditadura do proletariado. Não se sabe bem se essas formações acreditam em tais mitos, mesmo quando figuram nos programas oficiais; mas não há dúvidas de que nunca falam deles. A consequência é que, embora anunciem ideais paralelos aos extremistas do século passado, ao contrário deles nunca chegam a dizer como lá se vai. Copiam velhas receitas sem o ingrediente mágico.
Nesta farsa radical, o caso português apresenta variantes curiosas. A primeira é a ausência de mudança eleitoral, com o sufrágio de 2015 repetindo os resultados tradicionais. Poderia até dizer-se que o país escapa à tendência geral, se a solução governativa de Costa não tivesse colocado, pela primeira vez desde 1974, a extrema-esquerda na esfera do poder.
Para lá da coligação inesperada, mantém-se a originalidade do radicalismo lusitano. De facto, o actual governo segue à risca as instruções europeias, sendo tão bom aluno comunitário como o seu antecessor, que as forças desta maioria tanto criticaram. Mas o burlesco da situação não fica por aqui. Gozando do apoio dos habituais movimentos contestatários, o executivo beneficia de uma acalmia mediática e reivindicativa sem par nas últimas décadas, apesar de fazer cortes tão ou mais drásticos do que aqueles que antes justificavam urros de indignação.
Por outro lado, como os partidos extremistas mantêm as linhas argumentativas, é dentro da própria maioria que nascem alguns dos mais violentos ataques à política do governo. Por exemplo, o PCP encheu o país com cartazes que dizem: "Portugal tem direito: produção, emprego, soberania! Libertar Portugal da submissão ao euro" e "Emprego. Direitos. Produção. Desenvolvimento. Soberania. Basta de submissão à União Europeia e ao euro". Mas não apoia o PCP um governo totalmente empenhado nessa submissão?
Além disso, que significam realmente tais chavões? Será que os comunistas querem mesmo que Portugal saia do euro ou, até, da União Europeia? De facto, é isso que os slogans dizem, mas certamente não é isso que querem dizer. É verdade que Portugal vive uma espécie de submissão, mas ela resulta não da adesão, mas da enorme dívida externa que contraímos. A qual, por sua vez, só não é mais dolorosa precisamente porque pertencemos à UE e ao euro, como se vê comparando com casos como a Argentina. Se saíssemos da comunidade europeia, não só a dívida, e portanto a submissão, continuavam lá, como perderíamos as ajudas que tanto têm reduzido o seu peso. Assim, realmente, estas frases constituem enormes disparates políticos, como qualquer pessoa sensata consegue ver.
Também constitui um mistério que um partido que tanto fala dos trabalhadores queira sair do euro. Realmente, os maiores prejudicados por esse movimento seriam os assalariados, ficando sujeitos à recorrente desvalorização dos ordenados, sempre que isso interessasse a um capitalista em dificuldades de concorrência externa. A experiência dos primeiros vinte anos de democracia é, neste campo, esmagadoramente eloquente.
Mas, de algum modo, estes cartazes do PCP ajudam a esclarecer a originalidade do radicalismo português. A proposta de saída do euro não interessa aos trabalhadores, mas seria preciosa para a despesa pública, recuperando o uso da rotativa dos escudos para financiar o aparelho do Estado - o que confirma a verdadeira natureza corporativa dos radicais lusitanos.
O PCP está hoje na esfera do poder. Estas palavras de ordem mantêm a ilusão da luta tradicional, fingindo atacar o governo que de facto apoia. Elas só podem ser ditas se não forem para levar a sério, reproduzindo a farsa de que falava Marx.

Professor universitário

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