www.publico.ptBárbara Reis - 24 jun. 09:25

Mélenchon, Albright e o chapéu da rainha

Mélenchon, Albright e o chapéu da rainha

A rainha não pode votar, mas não é a política. Escolheu um chapéu com as cores da bandeira europeia de forma intencional. Como Albright fez durante anos com os seus alfinetes.

Depois de ver o chapéu que Isabel II usou no Parlamento de Londres esta semana fiquei convencida de que a rainha leu as memórias diplomáticas de Madeleine Albright.

Como muitos britânicos notaram, o chapéu tinha uma “enorme semelhança” com a bandeira da União Europeia. Fundo azul com flores da mesma cor e, no meio, a inflorescência era amarelo dourado (uma bonita palavra que os biólogos usam para designar o centro da flor). Os jornais não resistiram e fizeram montagens com o chapéu da rainha de um lado e a bandeira europeia azul com estrelas amarelo dourado do outro.

Muitos súbditos acreditam que Isabel II é a favor do “Brexit”, mas ninguém sabe de facto o que pensa a senhora sobre isso. A rainha tem a obrigação absoluta de ser neutral em relação às opções políticas do governo e às decisões dos cidadãos. Não pode sequer votar. Mas nenhum britânico acreditará que escolheu por acaso este chapéu — de entre as centenas que tem. O motivo que a levou ao Parlamento esta semana reforça a convicção: apresentar as oito propostas de lei necessárias para pôr em marcha a saída do Reino Unido da União Europeia. Ou seja, o tema era o “Brexit”. Mesmo que por absurdo não fosse intencional, não é plausível que ninguém no protocolo real ou alguma aia sensata tenha feito notar à soberana a “strong resemblance” de que todos falam agora.

PÚBLICO - Foto A rainha marcou presença na cerimónia de abertura da nova legislatura, no Parlamento britânico epa/pool

Não saberemos durante algum tempo se a intenção foi homenagear a União Europeia e os seus valores, se fazer um gesto de cortesia de despedida ou expressar um lamento pela saída do país da união. Mas que foi um statement político não há dúvida.

Madeleine Albright deu a melhor resposta de sempre à pergunta clássica “as mulheres são líderes diferentes?”. Claro que sim, disse a antiga Secretária de Estado de Bill Clinton. Os acessórios — como jóias e chapéus — são uma ferramenta diplomática. Basta usá-las.

Foi justamente isso que Albright fez. Durante anos, escolher o alfinete que iria prender na lapela tornou-se uma decisão política diária, obrigando todos, homens e mulheres, a tentar interpretar o statement da chefe da diplomacia norte-americana.

Quando as conversações estavam emperradas, Albright usava alfinetes em forma de balão, borboleta e flor (em sinal de optimismo) e quando andavam para trás usava caranguejos e tartarugas (para indicar frustração), explica no seu livro Read My Pins, editado pela Harper em 2009. Quando os russos foram apanhados a fazer escutas ilegais ao Departamento de Estado (o tema não nasceu com Donald Trump), Albright usou um alfinete em forma de insecto (bug em inglês, que é também o verbo usado para escutas). E quando discutiu a Chechénia com Putin usou um alfinete com três macacos, numa alusão aos “macacos sábios”, para sugerir que Moscovo não ouvia, não via e não criticava o que se estava a passar.

Nada deste “pin stuff” teria acontecido sem a ajuda de Saddam Hussein, como contou num TED Talk de 2010. “A seguir à primeira Guerra do Golfo, o cessar-fogo no Iraque resultara numa série de resoluções da ONU a impor sanções e as minhas instruções eram dizer coisas terríveis sobre Saddam Hussein sempre que possível, que ele merecia — ele tinha invadido outro país. E nisto surgiu um poema nos jornais de Bagdad a comparar-me com uma ‘serpente sem igual’. E eu por acaso tinha um alfinete em forma de serpente. E passei a usá-lo nas reuniões onde se discutia o Iraque. À saída da primeira reunião, uma jornalista perguntou-me: ‘Porque está a usar esse alfinete?’, e eu respondi: ‘Porque Saddam me comparou a uma serpente.’ E depois pensei: isto é divertido. Depois disso, fui à procura e comprei imensos alfinetes que reflectiam as diferentes situações que eu achava que iríamos viver no dia-a-dia. Foi assim que começou.��

Sem subtileza alguma, um dia antes de a rainha ter usado o seu “chapéu europeu”, o deputado francês Jean-Luc Mélenchon, que está numa deriva nacionalista radical, quase cuspiu na bandeira da União Europeia. “Francamente, somos obrigados a aturar isto? Olhem, aqui é a República francesa, não é a Virgem Maria. Não compreendo!”, atirou o líder da França Insubmissa perante uma câmara de televisão. O que Mélenchon não queria “aturar” é o chapéu de Isabel II. À sua frente, na Assembleia Nacional, estava hasteada a bandeira europeia ao lado da francesa. Foi isso que o deixou indignado. Mélenchon deve ter preparado a tirada ou, pelo menos, fez o trabalho de casa. A referência à Virgem tem origem na concepção da bandeira europeia feita por Arsène Heitz, que se inspirou nas estrelas em redor da cabeça de Maria que há em algumas pinturas antigas.

No seu gesto-mistério silencioso, a rainha sobre quem se diz ser a favor do "Brexit" fez mais pela Europa do que o deputado que queria ser Presidente da República e discutir connosco o futuro europeu.

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