sol.sapo.ptSebastião Bugalho - 24 jun. 21:38

Não consigo voltar

Não consigo voltar

Como é que o mundo podia continuar depois daquilo? Como é que ainda havia música depois de eu ouvir aquele silêncio - sem vento, sem vida. Como é que ainda havia notícias que não as vindas dali; como é que ainda se jogava à bola e se sorria; como é que se comentava futebol ou a América; como é que o mundo continuava quando ali estava parado ou a voltar para trás?

Estava a beber uma cerveja. Eram três da manhã de sábado, em Lisboa. O telefone tocou e eu não sabia. «Tens que ir para Pedrógão». E fui. Para a minha primeira reportagem de incêndio com a equipa mais jovem daquele posto de comando. Nada nos prepara para o que vimos. Não é por egoísmo que o conto, é por não ter outro modo de o contar. \

O que vi ali, aquela tragédia, aquela perda humana, foi vista pelos meus olhos. Conto-a, aqui, não como análise política, não como reportagem, mas como testemunho.

Parámos o carro em Castanheira de Pêra e, à janela, um local contou-nos o que perdera e o medo que tinha que se repetisse. Um bombeiro voluntário bebia água e lavava-se no lago de uma rotunda, suja de cinzas e morna do calor. Várias vezes a humanidade vence o ofício perante isto, perante a impossibilidade de fazer algo que não dizer «obrigado». Àqueles heróis, de interminável coragem. Voltei para Lisboa, para a Agência do Medicamento, para o Eurogrupo e para Centeno, para a distrital do PSD. Elas voltaram, outros ficaram, e um pedaço de nós também lá está. Acho que vai ficar sempre. Quero muito esquecer Pedrógão, mas que quem tem que o fazer não repetir-se nunca esqueça.

Voltei e ainda não consegui ouvir uma música; continua tudo quieto, sem conseguir ver felicidade num mundo que fez aquilo a si próprio. Não é lá que não consigo voltar. Não consigo é voltar para casa. Para as cervejas de madrugada, para a normalidade onde há água, os telefones funcionam e as famílias não desaparecem. Para a normalidade em que o arbítrio da morte não é o quotidiano.Nestas alturas, oiço sempre um estúpido perguntar na sala: «Onde estava Deus quando aquela gente toda morreu?». Hoje, esse estúpido sou eu. À D. e à B. 

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