www.dn.ptJosé Jorge Letria - 24 jun. 01:30

Opinião - Alípio de freitas: felizmente ainda há heróis

Opinião - Alípio de freitas: felizmente ainda há heróis

Revi há alguns dias, na RTP 2, o documentário sobre Alípio de Freitas e sobre a forma valente, solidária e absolutamente exemplar como se integrou no combate contra a ditadura militar no Brasil. Alípio de Freitas, de 88 anos, falecido no dia 13 de Junho, foi um verdadeiro herói do seu e do nosso tempo com um tipo de coragem que se tornou raro mesmo no seio das organizações revolucionárias.

Conheci, ao longo da vida, alguns heróis como ele, daqueles que passaram na solidão brutal e intimidante do cárcere tempos inesquecíveis das suas vidas, servindo de exemplo aos que resistiam a seu lado. Recordo um, entre outros. Chamava-se Ernesto Veiga de Oliveira, foi engenheiro de formação, militante e dirigente comunista, autarca, ministro, escritor e líder da bancada parlamentar do seu partido.

Tal como Alípio de Freitas, era um homem de palavra firme e definitiva, de convicções fortes como as muralhas das prisões que longamente os privaram da liberdade. Perante homens assim nunca somos capazes de imaginar até onde chegaria a nossa capacidade de resistência na presença de assassinos treinados para ferir, humilhar e para matar.

A descrição feita por Alípio de Freitas do extremo sofrimento físico e psicológico a que foi sujeito nas prisões da ditadura brasileira é uma verdadeira carta de guia de bravura que qualquer combatente político que queira ajudar a transformar a sociedade e a torná-la mais justa, humana e solidária deveria ser obrigado a ouvir e a resumir com palavras suas, para ganho do próprio e de todos. É assim que as grandes emoções ficam gravadas no coração e na memória para não poderem ser apagadas pelo tempo.

Estive muitas vezes com Alípio de Freitas e com Guadalupe Magalhães Portelinha, sua combativa companheira nas últimas décadas, em sessões e conversas na SPA. Observei o modo como a doença o fragilizava, isolava e angustiava. Um homem que tanto resistiu e que teve valentia de sobra para enfrentar fisicamente os torcionários não devia ver-se forçado a sofrer tanto, privado de poder fazer com essa adversidade o mesmo que fez com a inclemência da ditadura. Mas ele soube resistir. Perdeu a vista e foi perdendo a força interior que fez dele o herói de cuja memória com admiração, amizade e muito respeito nos curvamos.

O Alípio era um verdadeiro herói. Pegou em armas no Brasil humilhado pela ditadura militar, foi torturado no "pau de arara", levou choques violentos, foi tratado a murro e a pontapé, mas nunca deixou de dizer na cara dos carrascos como era grande e luminoso o seu amor à vida e às causas que o faziam erguer-se, valente entre os mais valentes.

Muito me impressionou ouvir a admiração comovida com que companheiros de cárcere e de câmara de tortura lhe chamavam herói e o davam como exemplo definitivo da coragem contra o medo, a injustiça e a crueldade mais mesquinha.

Lembro-me de ouvir a forma como José Afonso o homenageou com uma canção, a única que dedicou a um resistente vivo, fazendo dela uma celebração da coragem e do verdadeiro heroísmo. Também por isso, Alípio de Freitas foi muito merecidamente presidente da Associação José Afonso, representando como nenhum outro a coragem que o cantor-criador de Grândola, Vila Morena tanto admirava.

Alípio de Freitas foi professor, jornalista, narrador dos combates que travou como resistente, foi pároco de paróquias de subúrbio em São Luís do Maranhão, foi defensor dos camponeses, foi clandestino e presidente da Liga de Favelados do Rio de Janeiro, foi agitador da Frente de Mobilização Popular, foi torturado, exilado no México e em Cuba, viveu em Moçambique, foi apátrida por vontade da ditadura brasileira e poderia ter tido mais de um século de prisão para cumprir se entretanto o não matassem. Mas soube e quis resistir até regressar a Portugal em 1983.

Foi herói e mestre para muita gente da sua geração e da seguinte em prisões do Brasil. Por isso, quando agora fechou o olhos e partiu, todos ficámos mais pobres, indefesos e vazios. Morreu um dos melhores de todos nós, herói sem guarda de honra, mas com a honra intemporal e imensa de ter sido o mais valente de todos. E, afinal, como dizia a minha avó, ainda existem heróis assim.

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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