www.publico.ptSão José Almeida - 24 jun. 09:05

Ridículo

Ridículo

Apagado o fogo, enterrados os mortos, é previsível que se ouça o discurso sobre a atribuição de culpas.

3 de Setembro de 2005, escrevi aqui: "Mais uma vez, os fogos são a ferida exposta do grau de incúria, desleixo e abandono a que o país está votado pelas estruturas de poder e de como as elites governantes têm exercido o poder em roda livre e exaurido o país. A inexistência de estruturas e meios eficazes de combate aos incêndios é a demonstração de como quem decide tem protelado as opções que realmente são do interesse comum.

"Mas o combate aos incêndios é o fim da linha. É do domínio público que com a desertificação territorial, com o desaparecimento do mundo rural, com as novas formas de energia, há que salvaguardar o ordenamento do território e ter em conta o abandono da floresta (...) perante a terciarização do país e a concentração no litoral, os poderes públicos omitiram-se."

Foi há 12 anos, mas permanece actual. De lá para cá, nada no país de facto mudou em relação à forma como o Estado olha o património florestal e o mundo rural, mas também o bem-estar das populações. A catástrofe que assolou o país esta semana apenas escancarou a "incúria", o "desleixo" e o "abandono". Fê-lo com 64 mortos e 254 feridos confirmados até agora.

Perante o drama humano que os fogos desta semana encerram, apenas se pode concluir que as autoridades nacionais andaram mais de uma década a empurrar com a barriga a definição de uma política florestal e de prevenção de incêndios e a fazer de conta que atamancavam uma estratégia de remendos para a floresta e para a prevenção e combate a incêndios. Todos os governos — mas todos, insisto — o fizeram com soluções de improviso, que apenas tinham como finalidade mostrar que existiam politicamente, alterando o que tinha sido feito pelos anteriores. Fizeram-no sem lógica, sem coerência, sem respeito pelas populações, pela natureza, pelo território, pelo país.

Os exemplos sucedem-se. António Costa, ministro da Administração Interna, avançou nas soluções de combate aos fogos (aquisição de aviões) e, depois de resistir, finalizou a compra do SIRESP, iniciada no Governo Santana Lopes e cujo contrato foi assinado três dias depois de o PSD perder as eleições. E impôs-se, levando o Governo de José Sócrates a recusar a criação de um comando único e a centralização das políticas florestais e de prevenção e combate a fogo, a solução global que fora preparada por especialistas. Expedito foi, porém, Sócrates a incorporar a Guarda Florestal na GNR.

Mudado o Governo, foi a vez de Passos Coelho extinguir a Direcção-Geral das Florestas e acabar com os governos civis, matando o seu papel de frente avançada do MAI nos distritos e sem acautelar a delegação de todas as competências. A estrutura de comando da Protecção Civil ficou esvaziada.

Já o actual executivo insistiu em recusar a coordenação única, mas aprovou um pacote de medidas sobre política florestal que jaz no Parlamento desde Abril, para o qual os deputados foram acordados pelas chamas. Prossegue, portanto, a estratégia de remendos, sem um pensamento estruturado e consequente.

É ridícula a forma como os sucessivos governos têm desprezado o assunto, enquanto bocados do país vão ardendo ano após ano, a economia da floresta vai sendo negligenciada, as pessoas vão perdendo os seus bens e as suas vidas. É ridícula a forma como sucessivos governos vão inventando soluções em cima do joelho.

Agora, quando mais um bocado do país tiver ardido, quando dezenas de pessoas morreram, mais de duas centenas ficaram feridas e um número desconhecido de outras ficou sem nada, vem o discurso moralista de que é preciso encontrar culpados.

Apagado o fogo, enterrados os mortos, é previsível que se ouça o discurso sobre a atribuição de culpas, que não resolverá nada, mas que servirá para fazer politiquice. Aliás, este jogo já começou com pedidos de demissões.

Mas será que alguém acredita que a responsabilidade do que aconteceu é de Constança Urbano de Sousa ou de Capoulas Santos? Já agora, será que alguém quer também atirar a responsabilidade para cima dos bombeiros ou dos GNR que no sábado deixaram as pessoas em fuga entrar na "estrada da morte"?

NewsItem [
pubDate=2017-06-24 10:05:00.0
, url=https://www.publico.pt/2017/06/24/politica/noticia/ridiculo-1776650
, host=www.publico.pt
, wordCount=671
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2017_06_24_1043096680_ridiculo
, topics=[opinião, política]
, sections=[opiniao, actualidade]
, score=0.000000]